Por José Mendes Bota Diplomata, Primeiro Conselheiro da Delegação da União Europeia junto da Santa Sé, em Roma

Muitas pessoas terão uma ideia incompleta da atividade desenvolvida pelo Papa e pela Cúria da Igreja Católica sediada no Vaticano. Vêm frequentemente pela televisão as cerimónias litúrgicas da Praça de S. Pedro, as visitas evangélicas do Santo Padre um pouco por todo o mundo, as multidões de crentes em oração, os peregrinos calcorreando os caminhos que vão ter a Lurdes, Santiago ou Fátima, as beatificações. Talvez desconheçam que por detrás das encíclicas e das mensagens papais cada vez mais frequentes sobre temas prementes da sociedade que ultrapassam em muito as fronteiras da igreja Católica ou de outras religiões do mundo, para se situarem no interesse direto de toda a Humanidade, está um trabalho de reflexão ao mais alto nível, envolvendo não só os clérigos e líderes religiosos, mas também líderes políticos, especialistas e investigadores de elevado mérito, chefes de empresas de nível mundial, ativistas de organizações não-governamentais ou reputadas academias. É assim que se debatem temas tão interessantes e diversificados como a inteligência artificial, a desinformação e as chamadas "fake news", a defesa do meio ambiente, a emigração e os refugiados, os conflitos no Médio Oriente, na Ucrânia ou na Venezuela, o multilateralismo, a liberdade religiosa ou até, imagine-se, o abuso sexual de menores, tema onde a própria Igreja tem um registo que o Papa Francisco se tem esforçado por corrigir.

No desempenho das minhas funções diplomáticas estive presente num desses eventos reflexivos sobre um tema que me despertou para uma realidade suja e cruel, de cuja dimensão ameaçadora não tinha ainda a devida noção, mas que me motivou a escrever estas linhas no sentido de sensibilizar eventuais leitores, amigos e conhecidos a buscar mais informação e reagir da forma que acharem mais adequada. Os debates foram públicos, e escrevo aqui sobretudo como cidadão.

O evento em si intitulava-se "Promovendo a Dignidade Digital das Crianças: do Conceito à Ação", realizou-se na Academia Pontifícia de Ciências Sociais nos dias 14 e 15 de novembro passado (http://www.pass.va/content/scienzesociali/en.html). Ali falaram personalidades como o Grand Iman Ahmed Al-Tayeb, a Rainha Sofia da Suécia, o Patriarca Batholomew da Igreja Ortodoxa, o Rabi David Rosen, o líder espiritual hindu Ravi Shankar, líderes das grandes empresas da internet como a Microsoft, Amazon, Google, Apple, Facebook and Paramount Pictures ou a Comissária Europeia Mariya Gabriel, entre muitas outras.

As crianças constituem simultaneamente um futuro que se deseja brilhante para a Humanidade, mas são também uma das categorias mais vulneráveis da sociedade, carecidas de proteção para as consequências indesejadas da era digital em que vivemos. Os dados são claros: mais de 800 milhões de menores já navegam na net, um número que está a crescer exponencialmente a cada dia que passa. Desde os anos 2000, é verdade que a net abriu novas oportunidades para as jovens gerações, proporcionando plataformas de troca de ideias e de informação. Mas, existem lados negros da web, e um deles é feito de pornografia extrema, violenta e abjeta na qual crianças (desde tenra idade), são vítimas de abusos e exploração sexual e outras formas de gravíssimos atentados à dignidade humana. O mundo está a ficar doente, e só de pensar que existem seres humanos capazes de tamanhas atrocidades, nem que seja pelo consumo de tais produtos pornográficos, é algo que revolve as entranhas de qualquer pessoa com um mínimo de princípios e de sentido ético.

O que mais me impressionou foi o mote dado pelo Papa Francisco (que tive o prazer de cumprimentar) no discurso de abertura da conferência: "temos que banir da face da terra todas as formas de abuso de crianças (…), a divulgação de imagens de abuso e de exploração de menores envolvendo cada vez mais violentas formas sobre crianças cada vez mais jovens". De acordo com estudos recentes, a pornografia está a tomar dramáticas proporções no mundo digital, frequentemente ligada ao tráfico de seres humanos, resultando numa perda alargada da noção de dignidade humana. O que mais perturba o Santo Padre é o facto de "a pornografia estar livremente acessível a menores nos media digitais, conduzindo a graves dependências, comportamentos violentos e relações sexuais e emocionais perturbadas". A idade média dos menores que acedem pela primeira vez a imagens desta natureza é de onze anos (o que quer dizer que há muitos menores com menos idade a aceder…) um número com tendência a descer cada vez mais. A internet trouxe-nos muitos benefícios, mas há que encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e o bem geral da sociedade. Daí o apelo do Papa às grandes companhias digitais ali presentes para que não se restrinjam ao papel de meros fornecedores de plataformas tecnológicas, negando-se a ser responsáveis legais e morais pela forma como são usadas. E pediu também aos engenheiros digitais para usarem a inteligência artificial no sentido de desenvolver algoritmos éticos que permitam eliminar imagens ilegais e danosas deste género da circulação online, estabelecendo uma nova ética para o sector. Finalmente, o Papa pediu aos decisores políticos para tomarem todas as medidas legislativas e executivas que forem necessárias. Neste sentido, importa dizer que a União Europeia tem estado (e continuará) a trabalhar em consonância com estas preocupações. “Safer Internet for EU” e "General Data Protection Regulation (GDPR)" falam por si. É expectável para breve uma iniciativa legislativa. Porém, a União Europeia abrange apenas uma parte da Europa, e esta ameaça é global. Os bons exemplos carecem de ser replicados em todas as partes do mundo. Daí a importância do papel dos diferentes credos religiosos associados nesta causa.

Desta conferência saiu um projeto de Plano de Ação que será debatido o mais alargadamente possível no quadro de uma Aliança contra o Abuso e a Exploração Sexual de Crianças. O caminho ainda agora começou. A mensagem final resume-se numa frase: a dignidade da criança é uma responsabilidade civil que nos envolve a todos nós, e a indiferença é imperdoável.