Por: Miguel Peres Santos – Mestre em Gestão Cultural pela Universidade do Algarve apdsmiguel@gmail.com – http://facebook.com/miguelapdsantos

(…) Por fora das gavetas indica-se o que está dentro. Quem tiver curiosidade, abre as gavetas e escolhe o que entender (…)

António Ferro, in Teoria da Indiferença (1920)

O “Estado Novo” como regime político foi fruto de um longo, complexo e sinuoso processo, desde os primeiros tempos da Ditadura Militar até à implantação das novas instituições saídas da Constituição da República Portuguesa de 1933. Sob as velhas bandeiras dos discursos político-ideológicos da direita conservadora: “Deus”, “Pátria”, “Família”, “Trabalho”, agora transformadas em dogmas do “Estado Novo”, é fácil calcular que nem tudo seria simples e linear no discurso ideológico para a prática política (ROSAS, s/d).

À sombra da apologia oficial do ruralismo e do regionalismo, nascia um forte nacionalismo imperial que se fazia sentir através de uma imagem identitária nacional que visava sedimentar uma nova memória coletiva baseada numa leitura diferente da História e num patriotismo exacerbado que tinha a intenção de “esconjurar”, a “desordem” instituída, o “Caos” económico e social e a “perda” de uma identidade aglutinadora (ACCIAIUOLI, 1998). Não se pretendia invocar todo o percurso histórico da pátria, mas alguns períodos selecionados, tendo-se desprezado as épocas de decadência. O Nacionalismo fundou-se, sobretudo, na veneração dos feitos ancestrais dos heróis transformados em mitos e exigiu a definição do que era verdadeiramente português, eram estes factos a Reconquista, os Descobrimentos, entre outros.

A convicção ou a necessidade dos princípios orientadores do regime não chegavam para a assimilação dos valores culturais dos destinatários, como implicava a pedagogia de forma organizada e imperativa, sobretudo devido às caraterísticas da população, na sua maior parte, analfabeta. Porque, politicamente, “o que parece é”, como diria o próprio Salazar, ou seja, “só existe o que se sabe que existe”, porque a aparência vale pela realidade, era indispensável encenar as grandes certezas e sua tradução política, elogiar os benefícios da sua concretização, impor estas ideias no espírito de todos e de uma forma total no quotidiano, não deixando ao livre-arbítrio de cada um, mas tornando-a propaganda do Estado, isto é, debaixo da designação de “Política do Espírito”. 

Propaganda acerca da “Política do Espírito” e em sua defesa promovida pelo regime nos anos 30 do Século XX

 

Será com este propósito que António Oliveira Salazar cria o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), em Outubro de 1933, como se pode verificar nas próprias palavras do Chefe de Governo, este instituto tinha grandes ambições:

“(…) Grande missão tem por si o Secretariado ainda que lhe toque o que é nacional, por tudo o que é nacional há-de interessar. Elevar o espírito da gente portuguesa no conhecimento do que realmente vale, como grupo étnico, como meio cultural, como força de produção, como capacidade civilizadora, como unidade independente no concerto das nações (…)” (SALAZAR, 1967)

Para chefiar o SPN, o Chefe de Governo chama António Ferro, escritor e jornalista que havia adquirido notoriedade com o seu livro sobre a viagem em torno das ditaduras europeias nos anos 20, tendo convencido Salazar de que o povo precisava de espectáculo, mostrando-lhe que tinha um programa e objetivos para promoção do regime:

“(…) A Política do Espírito, (…) não é apenas necessária, se bem que indispensável em tal aspecto ao seu prestígio exterior da Nação ela é também necessária ao seu prestígio interior, à sua razão de existir. Um povo que não vê, que não lê, que não ouve, que não vibra, que não saiba a sua vida matinal de deve e haver, torna-se um povo inútil e mal humorado (…) A literatura e a arte são os dois grandes órgãos que precisam de uma afinação constante, que contam nos seus tubos, a essência e a finalidade da criação (…) Mas que se faça uma Política do Espírito inteligente e constante, consolidando a descoberta dando-lhe altura, significado e eternidade que não se olhe o espírito como uma fantasia, uma ideia vaga mas como uma ideia definida, concreta, uma pequena necessária, com uma arma indispensável para o nosso ressurgimento (…)” (FERRO, 1932).

 

António Oliveira Salazar e António Ferro (Fotografia: Google) 

 

Para António Ferro, a propaganda era muito mais do que um serviço de informação pública do Governo, era um investimento do regime na formação de almas a todos os níveis e abrangendo todas as artes. O SPN acabaria por se articular “num gigantesco e muito forte aparelho de propaganda, num vasto complexo político-burocrático de difusão ideológico-burocrática” (ROSAS, 2007), onde se inseriam a FNAT, o aparelho da educação nacional, a Legião Portuguesa e Mocidade Portuguesa, a OMEN (Organização das Mães pela Educação Nacional), o aparelho corporativo (sindicatos nacionais), as Casas do Povo, etc.. Cada uma delas com a sua propaganda setorial e o seu espetáculo, num quotidiano que aspira ver enquadrado no espírito do regime, de acordo com a sua ideologia disciplinadora, “através de uma comunhão que se ensaia em cada gesto público” (ROSAS, s/d).

A impregnação de uma consciência mistificada e metafórica da Nação e da História avança em direção à implementação de uma coesão moral e ética, da elevação da auto-estima e orgulho nacional, da institucionalização da “portugalidade” (DO Ó, 1999), especialmente da mobilização das massas para a capacidade de concretização e realização dos projectos vitais para o país ou para uma localidade em particular. Inúmeras atividades deste género irão ter lugar um pouco por todo o país, tendo investindo em propostas de animação sociocultural, sobretudo localizadas nas aldeias e vilas portuguesas, estas eram centros privilegiados para a difusão da mensagem acerca da personalidade do “Estado Novo”.

As sessões de propaganda através de uma estrutura de cinema ambulante, foram uma delas o cartaz proposto, que deixa logo transparecer uma vertente bastante forte de propaganda do regime. A História e o passado, visto por filmes como “Torre de Belém”, as obras públicas e o fomento industrial que podiam ser vislumbrados pelos espectadores em “Lançamento do Dão” e a “Estrada de Peniche”, as milícias do “Estado Novo”, em “Desfile da Legião e Mocidade”, as principais figuras nacionais em “Carmona e Salazar” e depois a obediência, a autoridade e o imaginário rural, retratados em “As Pupilas do Sr. Reitor”.

Para organizar estas sessões de cinema de ambulante, o SPN solicitava às Câmaras Municipais a autorização para instalar equipamentos numa praça ou largo ou mesmo em espaços fechados, além disso, era solicitado que uma figura do poder local, que fosse respeitada e reconhecida por todos para que tivesse um efeito dissuasivo face a algum ceticismo dos populares, ou seja, um autêntico agente local de propaganda do regime (Arquivo Municipal de Tavira, CMT: Correspondência Recebida, Pasta AC 80, 4/10/1937). As vantagens comunicativas que a imagem pode estabelecer com o público, significam um recurso de propaganda muito útil, e o cinema foi transformado em documento de informação (TORGAL, 1996).

O “Teatro do Povo” foi também outra das rubricas organizadas no seio do projecto cultural do SPN, tendo-se analisado a composição de um modelo de atuação e interpretação único. Este era fundamental pois surgiram divergências entre agentes culturais e os serviços do regime quanto aos conteúdos a apresentar, aliado ao desinteresse dos artistas quanto à ideologia do “Estado Novo”. Este projeto era essencial ao regime, sobretudo pelo contato com as povoações afastadas dessas atividades culturais, como acontece nas zonas rurais e interiores (MELO, 2001). Um processo semelhante às sessões de cinema ambulante era solicitado pelo SPN, ou seja, um representante do executivo municipal para tecer alguns comentários e explicações sobre a “intenção do governo ao criar e enviar ao povo o teatro do povo” (Arquivo Municipal de Tavira, CMT: Correspondência Geral Recebida, Pasta A 268, Nº 867, 3/09/1938).

 

 

Cartazes de divulgação do “Teatro do Povo” e do concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal”, promovidos pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN)

 

 

Em 1938 foi lançado pelo SPN o concurso de “Aldeia Mais Portuguesa de Portugal”, que tinha como objetivo o convite a cada região ou concelho do País a formular pesquisas sobre seu passado. Este concurso é sintomático da tentativa de aproximação do SPN entre o mundo rural da imagem do tipo de ser português onde o campo e as suas gentes abrem outra perspetiva sobre a propaganda nacional e os exemplos de vida e costumes destas gentes que deveriam ser absorvidos pelo meio urbano.

 

O SPN e a “Política do Espírito” desenhada por António Ferro, foram o grande espectáculo político-cultural do regime, onde a evocação do “Império” e dos seus heróis, a reconstrução da história de um país serviu como ferramenta legitimadora dos seus ideais, sobretudo nos meios mais rurais do país, tendo o seu ponto alto com as comemorações do “Duplo Centenário” e a “Exposição do Mundo Português”, realizadas em 1940. 

 

 

Um dos cartazes que serviu de divulgação às comemorações do “Duplo Centenário”, promovida pelo “Estado Novo”

A II Guerra Mundial e o Pós-Guerra trouxeram consigo a primeira crise do Salazarismo e a adaptação aos novos tempos, e com isso, a reorganização na propaganda e no SPN, que em 1944 passaria a denominar-se Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI). Em 1949 dá-se a demissão de António Ferro do SPN/SNI, e com ela o fim de uma época no domínio da política cultural e de propaganda do “Estado Novo” “de afirmação convicta, desafiadora e criativa” (ROSAS, s/d) dos ideais e da vontade triunfante do regime dos anos 30 e início dos anos 40.