A Voz do Algarve - Como perspetiva a retoma do Algarve, após a situação da pandemia e da saída do Reino Unido da União Europeia. Que impactos serão de esperar no turismo que é o principal setor e o motor da economia algarvia?
Mendes Bota - O Turismo é um sector híper-sensível a crises que impliquem com a segurança ou a saúde das pessoas. É o primeiro a fechar portas, mas é também o primeiro a reabri-las. O problema é a devastação que causa entre estes dois momentos, em termos de perda de negócios e empregos, logo, perda de receitas fiscais e de poder de compra, desânimo geral na hotelaria, na restauração, na animação. É onde estamos agora, no Algarve, já que pergunta. Sou otimista quanto à reativação. As infraestruturas turísticas estão cá, não fugiram nem caíram. Mas há que retirar lições para esse futuro que se deseja próximo. E se existe algo que a pandemia nos ensinou é que há uma relação direta entre Turismo e saúde pública, fundamental para consolidar a confiança dos turistas neste destino chamado Algarve que, ainda por cima, teve um grau de incidência da pandemia menos gravoso que o resto do Continente. Daqui para a frente, os indicadores epidemiológicos deveriam integrar os mecanismos de monitorização do turismo, pois o aliviar das restrições às viagens ou a introdução de medidas e políticas preventivas do combate à pandemia serão baseadas na confiança gerada por dados confiáveis. Um destino como o Algarve deve enviar mensagens claras e consolidadas aos seus mercados emissores, com o Reino Unido à cabeça, ajustando-se às perceções e necessidades dos seus clientes. Mais de 80% do tecido empresarial do turismo algarvio é constituído por micro, pequenas e médias empresas. Os apoios disponibilizados pelo Governo até agora parecem-me claramente insuficientes face à importância económica do sector. E a Secretária de Estado do Turismo dá a sensação de andar perdida em combate…
VA - Como avalia a resposta ao COVID-19 dada pela União Europeia e pelo governo Português?
MB - Quem, senão a União Europeia, seria capaz de lançar um Plano de Recuperação e Resiliência mobilizando 1,8 triliões de Euros para ajudar os Estados membros a reparar os danos económicos e sociais causados pela pandemia? Quem seria capaz de pôr em marcha uma Estratégia Europeia de Vacinação, garantindo 2,3 biliões de doses de vacinas? Mesmo com os atrasos da indústria na produção, é um esforço gigantesco de solidariedade no seio da União Europeia. Portugal isolado seria como uma casca de noz no meio de uma tempestade oceânica. Quanto à resposta do Governo português, ela tem certamente muitas falhas, avanços e recuos. Mas perante um fenómeno para o qual ninguém no mundo estava preparado, quem é que pode ter certezas? Não tenciono engrossar a multidão de especialistas em epidemias que subitamente se doutoraram na universidade da Tia Anica e produzem sentenças por tudo e o seu contrário. Estou aqui confinado, mas atento, aborrecido certamente, mas tenho que confiar que o piloto do avião é o primeiro interessado em que ele não caia.
VA - É seguramente o único algarvio que teve mais do que uma audiência com o Papa Francisco, pelo que sei foram quatro. Que imagem tem ou reforçou dessas conversas com o Papa?
MB - Em 2011 já tinha participado numa reunião com o Papa Bento XVI, noutro contexto. Mas agora estive com o Papa Francisco em quatro ocasiões diferentes. Desde logo, fui apresentado durante a audiência que concede anualmente ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé. Depois, encontrei-me com o Papa, a quem cumprimentei e com quem troquei breves palavras, durante três conferências de alto nível organizadas pelo Vaticano em que esteve presente de forma muito interventiva. Aliás, devo confessar que quando transitei da representação diplomática da União Europeia junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo, para a de Roma, junto da Santa Sé, tinha uma ideia bastante diferente do ambiente onde iria trabalhar. Imaginava o Papa e a Cúria muito focados nas celebrações litúrgicas e na gestão material da Igreja Católica.
Mais de 80% do tecido empresarial do turismo algarvio é constituído por micro, pequenas e médias empresas.Os apoios disponibilizados pelo Governo até agora parecem-meclaramente insuficientes face à importância económica do sector. |
Para minha surpresa, o Vaticano está na vanguarda do debate de temas de grande atualidade como a inteligência artificial, a desinformação, o fenómeno migratório, as alterações climáticas ou o tráfico de seres humanos, só para citar alguns. Especialistas, líderes políticos, empresariais ou religiosos de todos os continentes participam nesses eventos com reflexões de grande qualidade e, não raras vezes o Papa aparece de surpresa, e intervém, mesmo quando não está previsto no programa. A Santa Sé não tem exército, mas é o maior “soft power” do mundo. Todos os líderes pedem para ser recebidos pelo Papa Francisco, promotor do diálogo inter-religioso, foi uma bênção para a Igreja Católica, uma lufada de ar fresco numa casa atolada em escândalos financeiros e sexuais. É um reformista que paulatinamente tem conquistado terreno a uma ala conservadora que não se adaptou às mudanças da sociedade. A minha admiração pelo Papa Francisco cresceu. E se Roma é a “cidade eterna” de que toda a gente fala, foi nos Jardins do Vaticano ou por entre os edifícios adjacentes à Basílica de S. Pedro, no mais pequeno Estado do mundo, que senti uma grande paz espiritual. Foi lá que deixei uma âncora de saudade.
VA - Uma das suas grandes lutas e com grande notoriedade foi o combate à violência contra as mulheres. Fale-nos um pouco dos resultados obtidos.
MB - O contributo que dei para a aprovação da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, também chamada Convenção de Istambul, é aquilo de que mais me orgulho e que penso ter sido mais útil a mais pessoas. Estive em todas as fases do processo: na reivindicação, na proposta, no comité de redação e fui o relator da Assembleia Parlamentar que deu o aval ao Comité de Ministros para tomar a decisão final.
Desde 2006 lutei pelos direitos das mulheres, presidi na Europa à Comissão para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens, batalhei contra a violência que ainda hoje se abate sobre pelo menos um terço das mulheres no mundo.
Depois, coordenei uma “task force” de parlamentares de todos os Estados membros, e andei de terra em terra, junto de parlamentos e governos, a promover a Convenção e a sensibilizar no sentido da sua ratificação. Intervim em conferências em múltiplas partes do mundo, do Brasil à Islândia, até na ONU por duas vezes. Quando se ultrapassou o número necessário de Estados aderentes, a Convenção entrou em vigor. Foi a 1 de agosto de 2014. Nesse dia, que considerei o momento mais feliz e conseguido da minha vida pública, decidi começar a preparar a saída da política. Estive nela muito tempo, e sempre achei que as pessoas não se devem eternizar nos lugares. A mudança é boa, para nós, e para a instituição que servimos. Mas foi reconfortante ouvir, não há muito tempo, o então Secretário Geral do Conselho da Europa, Torbjorn Jagland, fazendo o seu discurso de despedida após 10 anos de mandatos, perante centenas de parlamentares e diplomatas, citar o meu nome e o trabalho que fiz para que a Convenção de Istambul fosse uma realidade como um exemplo do que de melhor se fez naquela instituição. Para mim, essa declaração vale mais que uma medalha. Desde 2006 lutei pelos direitos das mulheres, presidi na Europa à Comissão para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens, batalhei contra a violência que ainda hoje se abate sobre pelo menos um terço das mulheres no mundo. Nessa altura, quando ainda não era moda ser-se pela igualdade de género, muitos colegas masculinos na Assembleia da República referiam-se a mim, em tom sarcástico, como o “grande defensor das mulheres…” O relatório que fiz sobre a Prostituição, Tráfico e a nova Escravatura na Europa, ainda hoje é citado em debates sobre este tema, e fico-me por aqui que a lista é grande…
VA - Sendo um Regionalista convicto há décadas, ainda acredita hoje, na Regionalização? E acredita que haverá algum político capaz e com vontade, a nível nacional, de implementar a Regionalização do Pais ou pelo menos da Região Piloto do Algarve?
MB - Não existe atualmente nenhum líder político verdadeiramente empenhado em implementar a Regionalização de Portugal. Há os que a ela se opõem determinadamente, como o Presidente da República e as forças à direita do espectro partidário e há os regionalistas intermitentes como Rui Rio, que de três em três anos produz uma declaração ambígua e inconsequente sobre o assunto. O Partido Socialista de António Costa aflora a Regionalização quando lhe convém, e optou por uma falsa sensação de regionalização fazendo eleger indiretamente a presidência das CCDR’s, mas sem alterar a lei orgânica que mantém todo o poder de decisão e de orientação nas mãos do governo. O PCP não sai da cassete do “desígnio constitucional por cumprir” como se a Constituição não estivesse cheia de outros desígnios que se transformaram em utopias perante a indiferença da esmagadora maioria da população portuguesa. A verdade é que o referendo de 1998 proferiu uma sentença de morte à regionalização, até no Algarve, cuja certidão de óbito ninguém quer assinar, mas que está em moratória. O argumento (falso) da “criação de mais tachos para os políticos” é atualmente imbatível em período de gravíssima crise económica e social que se arrasta há mais de uma década desde a falência do Lehman Brothers até à pandemia atual, e cujo fim não se vislumbra ainda. Quando tantas pessoas lutam para sobreviver, perdem os seus empregos e negócios, o ambiente está inquinado para fazer qualquer debate sério e sereno sobre Regionalização. Acresce que muitos autarcas estão satisfeitos com a descentralização de competências para os municípios como quem toma um genérico de substituição, e vêm a regionalização como um potencial concorrente na captação de fundos do orçamento de Estado e da União Europeia. A situação atual, na qual Portugal é o único país da Europa comunitária sem verdadeiras regiões providas de autonomia administrativa, política e financeira, é ferida de ilegitimidade política pois as populações não são chamadas a eleger diretamente os seus representantes de nível supra-municipal, nem a pronunciar-se sobre as grandes opções políticas fundamentais para as áreas onde residem.
VA - Será que se vislumbra mais uma vez deixar a terra natal e ir de armas e bagagens para a capital, ou os ares do Algarve não permitem tal cenário.... (risos), com a candidatura do ex-Comissário Europeu Carlos Moedas à Câmara Municipal de Lisboa, como candidato da coligação PSD/CDS e dada a sua ligação ao candidato, já que foi membro do seu Gabinete, hipoteticamente, perante um convite irrecusável para integrar a equipa de Carlos Moedas ou para liderar um desafio autárquico à Câmara Municipal de Loulé, ainda estaria disponível para qualquer uma destas opções?
Qual a mais desafiante?
MB - Já disse noutras ocasiões e repito: não se pode dizer que desta água não beberei. Três vezes o fiz, e três vezes bebi…Mas com toda a sinceridade, nada me impele neste momento a regressar a funções políticas. Já dei muito de mim à política em desfavor da família. Agora tenho netinhos. Está na altura de compensar o que for possível, daquilo que tirei à minha esposa e aos meus filhos. Isto é como na hotelaria, uma dormida não usada é uma dormida perdida. Não volta mais. Há um custo pesado de oportunidade. Agradeço às muitas pessoas que se me têm dirigido incentivando uma hipotética candidatura à Câmara de Loulé. Mas tudo tem o seu tempo. E o meu tempo autárquico acabou. A maioria das pessoas que conheceram o que fiz por Loulé já não está cá. E a maioria dos que estão nem sabem quem fui. É a lei da vida. Depois, a política, que nunca foi um lugar muito saudável, está atualmente mais infecta, perdeu-se o respeito, perderam-se valores. Há muito ódio, muito veneno. E eu estou como a “Teresa Batista cansada de guerra”, do Jorge Amado.
VA - Qual seria para si um bom resultado para o PSD no País e no Algarve nas próximas eleições autárquicas?
MB - Não traço linhas laranja nem limiares mínimos de condicionamento do sucesso ou do fracasso do PSD nas próximas eleições autárquicas. Andei lá muitos anos, sei que cada candidato dá sempre o máximo de si próprio para obter o melhor resultado possível. Conheço o prazer de ganhar e sei o que custa perder. Compete a quem escolhe assumir a responsabilidade das suas escolhas. Nem todos o fazem. Sou de um tempo diferente, as conjunturas políticas nunca são comparáveis. Tive a felicidade de liderar o PSD que obteve no Algarve, em 2009, a maior vitória autárquica de sempre (9 Câmaras Municipais, incluindo a capital do distrito), e fui um dos fundadores da Associação Nacional de Municípios Portugueses quando o PSD era de longe a maior força autárquica do País. A realidade hoje está muito longe desse patamar de referência, e a entrada em cena de novas forças partidárias e das candidaturas independentes tornaram ainda mais difícil inverter a situação.
VA - Com 24 anos de atividade parlamentar entre 1983 e 2014 como Deputado à Assembleia da República (III, IV, V, VI, VII, X, XI e XII Legislaturas) e ao Parlamento Europeu (III e IV Legislaturas). Defensor da descentralização política e administrativa, foi eleito em 2006 Presidente do Movimento Cívico "Regiões, Sim!". Publicou 17 livros, a maioria sobre temas políticos, alguns deles sobre a Europa, sendo dois dos livros de natureza poética. Editou 3 obras discográficas e produziu 13 programas televisivos para a série “Jamboree” transmitida pela RTP. Editou ainda a Coleção “Cadernos PoesiAlgarve”, divulgando obras de poetas algarvios como Fátima Murta, Manuel Neto dos Santos e Fernando Cabrita. O que lhe falta fazer ainda para enriquecer ainda mais este vasto curriculum?
MB - Nunca trabalhei para o currículo. As coisas foram acontecendo naturalmente. O que penso fazer daqui para a frente é acompanhar o processo de integração europeia participando nas iniciativas da Associação de Antigos Deputados ao Parlamento Europeu e da Associação Parlamentar Europeia, de que sou membro. A minha intervenção cívica será focada no apoio a entidades que promovam o combate à corrupção, e mais transparência e integridade
no funcionamento das instituições em Portugal e no mundo. Pontualmente, tenciono exprimir a minha opinião como simples cidadão, sobre questões pertinentes da vida pública, quando julgar oportuno.
VA - Foi Presidente da Câmara Municipal de Loulé entre 1983-1985, passados cerca de 36 anos, quais as principais diferenças da gestão autárquica desse período em relação aos dias de hoje?
MB - Visto assim à distância, parece um período demasiado curto, comparado com os consulados de Joaquim Vairinhos, Seruca Emídio ou Vítor Aleixo, mas na realidade a minha intervenção no Concelho de Loulé fez-se sentir ao longo de toda a década de oitenta. Desde logo pelo papel que tive na vitória eleitoral do PPD/PSD nas eleições de 1979. Depois, pela confiança que o Presidente Júlio Mealha em mim depositou como seu Vice-Presidente (na altura chamava-se Vereador Substituto do Presidente…), colocando pelouros muito importantes para o desenvolvimento do Concelho sob a minha responsabilidade. Como corolário natural dessa ação, fui eleito Presidente da Câmara Municipal, consolidando apostas inovadoras em infraestruturas culturais,desportivas, viárias e de saneamento básico que fizeram de Loulé um caso de estudo, um exemplo para o resto do País. Muitos municípios enviavam delegações para verem in loco o que se estava fazendo em Loulé. Foi um período extraordinário em que estava quase tudo por fazer, que tive a felicidade de viver, e em que dediquei a melhor parte da minha juventude, entre os 24 e os 30 anos, ao povo da minha terra. Muita gente não sabe que nessa altura uma parte da vila de Loulé ainda não tinha nem água, nem esgotos nem eletricidade, o mesmo se podia dizer de Quarteira, Almancil, Boliqueime, Salir, Alte ou Ameixial. O resto, no campo e na serra, então nem se fala. Levar esses benefícios às populações era uma alegria imensa para todos. E nessa época, a população também participava, oferecia trabalho, máquinas, boa vontade. Renovámos os serviços técnicos com mais eficácia e uma forma moderna de atender o público. Foi o primeiro município do País a ensaiar a informatização. Hoje passo pelo Museu, pela Galeria do Espírito Santo, pelo Arquivo Histórico, pelas Piscinas Municipais, pelas avenidas Sá Carneiro e Mota Pinto em Quarteira, pelo Palácio dos Espanhóis, e sinto que também está ali algo de mim. Claro que ninguém se pode arrogar o exclusivo do mérito da obra feita. Há quem comece, quem continue e quem acaba. Recordo com saudade os outros membros das equipas autárquicas com quem trabalhei. Lamento que não se tenha feito justiça ainda à Dra. Isilda Martins, o meu braço direito na recuperação do património cultural e a quem o Concelho de Loulé muito deve. José Cavaco, meu fiel amigo e número dois no executivo a que presidi deu depois continuidade à obra até ao final da década. Por isso digo que esta foi a minha década. Uma década que está esquecida e que me compete recordar para a história do Concelho. Foi quando o 25 de Abril se começou a cumprir.
Muita coisa mudou ao longo dos últimos quarenta anos. Só para ter uma noção da diferença de meios financeiros, atente no seguinte; naquele tempo, estávamos na pré-história das Finanças Municipais, não havia fundos da Europa. O Poder Local era de uma pobreza Franciscana. Estive há dias a folhear o orçamento da Câmara Municipal de Loulé para o ano de 1984. Totalizava 883.836 contos, o que equivale em Euros e com correção monetária a cerca de 21 milhões de Euros na atualidade. Agora o orçamento da Câmara de Loulé para 2021 é de 180 milhões de Euros, ou seja, nove vezes mais.
Nada é comparável, mas sinto que naquele tempo existia uma alma diferente, um espírito de voluntário, de bombeiro da causa alheia.
VA - Com a vasta experiência que tem em diferentes funções políticas e de gestão, quais seriam hoje as suas principais prioridades para o Concelho se fosse Presidente da CML?
MB - Como não sou candidato nem voltarei a ser Presidente da Câmara de Loulé, deixo a definição das prioridades para quem lá está ou aspira vir a estar. Como simples cidadão louletano gostaria de ver uma administração municipal com um grau de eficiência e rapidez na resposta às solicitações dos munícipes num nível de excelência exemplar. Gostaria que a transparência das decisões fosse exemplar. Sinto que falta aqui um Provedor do Munícipe que com independência e sentido ético pudesse receber e analisar as reclamações dos cidadãos e interagir com o poder executivo na busca de soluções justas para situações conflituais. Mas também gostaria que existisse um sentido estético por parte dos cidadãos relativamente a situações de desleixo, incúria, e insensibilidade para com a paisagem urbana ou rural, que muitas vezes começam do lado de dentro da casa de cada qual. Depósitos de lixo, de ferro velho, de entulho, de detritos de jardinagem, casas em ruínas, carros abandonados, grafitis sem qualidade, pinturas exteriores de cores aberrantes, e muitas outras situações conspurcam o ambiente em que vivemos em comum. Isto educa-se, sensibiliza-se, é um papel para as escolas e a autarquia. Está-se a perder uma certa identidade cultural algarvia na arquitetura, nos espaços públicos. Loulé, como um todo, desde a serra até ao mar, na sua diversidade das cidades às aldeias, pode ser um brinco, um verdadeiro paraíso para quem cá vive e quem cá passa. Fizeram-se grandes progressos, mas o padrão de qualidade ainda pode ser melhorado.
VA - Sabemos que as causas sociais e em tempo desportivas (ciclismo), são ou foram para si muito relevantes na sua atividade como cidadão. Caso não venha a ter nova opção política por vontade própria e reconhecendo o dinamismo que o carateriza, como pensa rentabilizar/ocupar os seus próximos anos?
MB - Pode ser defeito ou virtude, mas sempre fui muito organizado em todas as minhas atividades, mesmo as mais domésticas e pessoais. Depois de 42 anos a trabalhar duramente chegou a altura de dedicar mais tempo à minha família, aos amigos e a mim próprio. É um direito que me assiste depois de tanto tempo dedicado à causa pública. A nossa vida é uma roleta, podemos morrer de um momento para o outro, como podemos chegar a centenários. Quero aproveitar o tempo que me resta para, ainda com saúde e alguma qualidade de vida poder usufruir o que ela nos oferece, fazer coisas que não tive oportunidade de fazer e que me dão satisfação, dedicar aos que me são queridos a atenção que merecem, regressar aos sítios onde fui feliz, visitar outros lugares que sempre desejei conhecer, conviver com os amigos. Tenho um plano com 100 atividades diferentes, sem calendário, e que vou implementando e praticando ao sabor da minha vontade, sem pressa. À cabeça, um desígnio maior: organizar a minha biblioteca particular. Ao longo da vida acumulei o que calculo serem cerca de 8.000 livros. Sempre tive uma paixão por livros, comprá-los, lê-los, cheirá-los, mexer neles. É a altura de os desencaixotar, registar, catalogar, dispô-los nas estantes que já adquiri. Comprei um programa informático próprio. É uma tarefa em que o meu filho José Miguel (que herdou esta paixão) me está a ajudar. Depois, existe um arquivo de material político para triar, com mais de cinquenta anos, documentos, programas eleitorais, panfletos, cartazes, autocolantes, ofertas de campanha, coisas incríveis que vou re(descobrindo) e de que já me tinha esquecido. Tornei-me associado da Ephemera (criada por José Pacheco Pereira) que tem um projeto interessantíssimo de registo e arquivo histórico real e alternativo à museografia política tradicional, para o qual já estou a contribuir com material meu. Cartas pessoais de Presidentes da República, Primeiros-Ministros, Presidentes de Parlamentos e outras destacadas figuras da política nacional e europeia. Está tudo ao monte. Há que depurar. Revistas, jornais, boletins, tenho toneladas para rever e organizar. Fotografias, devem ser mais de 100.000, calculadas por alto entre papel e digital.
VA - …certamente não se vai ficar apenas a mexer e a organizar os seus arquivos…
MB - Claro que não! Tenho uma forte costela ecológica que desejo reforçar na minha vida de consumos quotidianos, auto-produzir energia elétrica a partir do solar. Sou sócio da Almargem desde o ano 2000, não me inventei ambientalista de última hora. Revejo-me na encíclica do Papa Francisco “Laudato Sì”. Desejo consagrar uma parte da minha atenção à Agricultura da Amizade, reencontrando velhos amigos que ainda são vivos, do tempo da escola primária, do liceu, da universidade, espalhando sementes para amizades na nova geração. Fazer exercício físico, sim!, aproveitando as magníficas condições da nossa terra, adoro caminhar e correr em Vilamoura, Quinta do Lago, Calçadão de Quarteira, Parque de Loulé e outros sítios. Qualidade, natureza, limpeza, percursos de sonho, temos tudo aqui, há que usufruir. Quero aprender solfejo, sempre o desejei, tocava guitarra de ouvido, cantava no coro da Assembleia da República sob orientação do maestro. Desejo saber ler uma pauta. Espero um dia lá chegar. Não tenho a pretensão de ser agricultor, mas adoro semear favas no meu hortelejo, comecei agora umas experiências com culturas hidropónicas caseiras, de pequeno porte, alfaces, morangos, couves, feijão, etc, que prazer ver aquilo crescer… Adoro cozinhar. Quero celebrar o Natal com mais força, de forma a deixar um rasto solidário pelo ano inteiro. Continuar a ajudar a obra da Instituição de Solidariedade Social da Serra do Caldeirão. Quero acompanhar mais de perto os clubes do meu coração, de que sou sócio há muitos anos, Sporting, Louletano, Farense, Campinense, e estar a par de atividades que tocaram fundo no meu percurso formativo como o escutismo, a rádio, o teatro e até o ciclismo. Sou economista por formação, mas quem sabe, um dia, terminarei o curso de Direito que interrompi em 2010? A idade para o fazer não tem limites, apenas exige estar-se vivo, e para isso tenciono submeter a saúde a vigilância apertada, desacelerar o ritmo de vida, e manter telemóveis, computadores, redes sociais, televisão sob rédea curta, adotar o slogan “Slow life, Better life”…
VA - O seu último livro publicado, «Talvez…Adeus!», data de 2016 para quando um novo livro e que tema vai dar prioridade tendo em conta as muitas lutas que travou ao longo do seu percurso de vida?
MB - Há que não ter falsas modéstias, nem ilusões de importância. Depois de morrermos, tudo se reduz à sua verdadeira dimensão. A minha vida não tem nada de relevante que sobreviva ao crivo da História, mas pode ser considerada interessante pela diversidade de experiências por que passei. Pisei o solo de 80 países, trabalhei e vivi em quatro deles, viajei muito, contactei com muita gente, estive em grandes organizações internacionais, há muitos episódios que poderei contar, depois de decantar o meu arquivo pessoal. Sim, escrever é outra das minhas paixões. E não descarto um regresso à poesia. Esteve congelado, mas a política não conseguiu liquidar o poeta que continua a habitar dentro de mim. Penso que isso fez a sua diferença.
Nathalie Dias