por Diogo Duarte | Jurista, Licenciado em Direito e Mestrando em Direito Internacional | diogoduarte@campus.ul.pt

Não precisamos de nos prolongar nos textos de Arthur Kaufmann sobre ontologia jurídica para concluir que a Justiça necessita, também ela, de se questionar a si mesma.

Como diria o autor, não basta “ser porque se é”, é preciso “saber porque é que sendo, se o é”. Aceitando que este seja um princípio transversal a todos os ramos da filosofia e da ciência (ou não derivasse a ciência da filosofia), impõe-se à ciência jurídica a permanente e inquietante interrogação acerca de si própria.

Talvez estas palavras não tenham um sentido imediato para o leitor, mas proponho-me a ilustrar com um exemplo plausível aquilo que agora afirmo.

Numa decisão recentemente proferida pela secção criminal da instância local de Santa Maria da Feira, pertencente ao Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, um juiz condenou um indivíduo pelo crime de corrupção ativa, por se ter como provado que este tentou corromper dois agentes da Guarda Nacional Republicana (GNR), quando estes se preparavam para o autuar pela prática de várias contraordenações rodoviárias, nomeadamente, pelo o uso do telemóvel durante a condução e pelo desrespeito pelo sinal luminoso vermelho. Ficou igualmente provado que o indivíduo procurou aliciar os agentes da GNR, tendo oferecido treze notas de 20 euros (ou 260 euros), para que estes não procedessem à elaboração do respetivo auto de contraordenação, eximindo-o do pagamento de qualquer coim e/ou da eventual perda da licença de condução. A quantia monetária foi apreendida e registada pelos dois agentes da GNR, que igualmente lavraram auto de notícia (auto no qual são registados os factos que constituem o crime, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometido, a identificação do autor e os meios de prova).

Em tribunal, o indivíduo foi condenado pela prática do crime de corrupção ativa. Todavia, a decisão do tribunal não se ficou pela condenação, e ordenou que fossem restituídos os montantes apreendidos pelos agentes da GNR. Por outras palavras, ainda que o tribunal tivesse condenado o indivíduo pelo crime de corrupção ativa, ordenou que o dinheiro utilizado para a prática do crime, lhe fosse restituído.

Altamente discordante com a decisão do tribunal, o Ministério Público interpôs recurso da sentença, nomeadamente na parte em que ordenou pela devolução do dinheiro apreendido. Segundo o Ministério Público, além de todo os preceitos normativos da legislação nacional, comunitária, e internacional que a decisão do tribunal judicial alegadamente viola, foram três os argumentos utilizados a título principal. Em primeiro lugar, o Ministério Público alicerçou a sua narrativa na existência de um facto anti-jurídico, isto é, baseou-se na existência de um crime, pelo qual o indivíduo foi condenado, para inviabilizar a restituição do dinheiro. De seguida, e em sentido complementar, asseverou pela indissociabilidade da quantia apreendida e do crime pelo qual o indivíduo havia sido julgado. Por último, e talvez com uma exposição mais refletiva, foi alegado pelo Ministério Público, que a restituição da quantia não é moral nem socialmente aceite, porquanto constitui um “presente” que a Justiça atribui ao “corruptor”.

Em sede de apreciação do recurso, o Tribunal da Relação do Porto, após escamotear toda a argumentação do Ministério Público, concluiu que o dinheiro somente poderia reverter a favor do Estado caso os agentes da GNR o tivessem aceite, porquanto tal raciocínio não se aplica em relação ao corruptor. Na sua exposição, são vários os fundamentos de que o Tribunal da Relação do Porto se socorre para alcançar essa conclusão.  Num primeiro plano, o Tribunal refere “nem a natureza da quantia apreendida nem as circunstâncias do caso põem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferece risco sério de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”. Num outro ponto, é afirmado que “estamos perante uma quantia monetária que pela sua natureza fungível e fácil acessibilidade por todos os cidadãos, não se reveste de qualquer perigosidade intrínseca”. O Tribunal termina a sua exposição acrescentando que a perda da quantia a favor do Estado “nem parece surtir o efeito pretendido, dado que o arguido, sempre poderia ter acesso a novas quantias monetárias”. Desta forma foi confirmada, e por isso mantida, a decisão judicial que, em primeira instância, ordenou a restituição do valor pecuniário ao condenado, tendo tal decisão colhido a unanimidade dos juízes desembargadores.

Ora, salvo o devido respeito (e que é total) pelo exercício da magistratura e pela atividade dos Tribunais, é fundamental reconsiderar os ditames da nossa Justiça. O fundamento do Tribunal da Relação do Porto é, em muitos dos seus aspetos, criticável. É certo que a restituição do montante pecuniário não melindra a segurança pública, mas o mesmo dificilmente é passível de ser afirmado em relação às justas exigências da moral ou mesmo da ordem pública. Sob este aspeto em presença é legítimo que se percecione a restituição do dinheiro ao condenado como um “presente” concedido ao autor do crime, conforme é defendido pelo Ministério Público. Esta ideia, somente vem a reforçar o sentimento de impunidade e da má administração da justiça, que tantas (e injustas) vezes corrói a reputação dos Tribunais portugueses. Por outro lado, é excessivo que se considere que 260 euros são, conforme afirma o Tribunal, uma quantia monetária de fácil acessibilidade por todos os cidadãos. Esta é uma consideração que não compete ao Tribunal realizar, sobretudo, porque a quantia em questão representa cerca de 46% do ordenado mínimo nacional, e ainda que fosse possível assegurar que esta é uma quantia a que todos os cidadãos conseguem aceder, não é legítimo concluir como tal, que todos os cidadãos estariam dispostos a utilizar essa mesma quantia para a prática de um crime de corrupção ativa. Por último ao concluir que a perda do dinheiro a favor do Estado não constitui um factor dissuasor pelo que o condenado sempre poderá ter acesso a novas quantias, o Tribunal negligencia o sentido contrário dessa mesma afirmação, porquanto constitui um factor de incentivo à adoção de comportamentos de reincidência, o facto de o dinheiro utilizado no cometimento de um crime de corrupção activa não verter a favor do Estado, sendo restituído ao indivíduo.

Para o senso comum, mais desfasado da linha de pensamento jurídico, é plenamente óbvio que em caso algum se justifica que o condenado seja presenteado com a devolução da quantia que utilizou para praticar o crime em questão, por menor ou mais irrelevante que essa quantia aparente representar. E é neste plano em particular, que a justiça fica aquém do senso comum, na estrita medida em que se escusa de questionar a si mesma, aplicando duramente a lei positiva, sem qualquer outro crivo.

É neste recalco que se tomam por prudentes e desejáveis as palavras Arthur Kaufmann, que na sua “Crítica do postulado da vinculação” afirma que “Parece ser claramente absurdo insistir, contra o reconhecimento do carácter vago e poroso dos conceitos legais ou da pré-compreensão de cada juiz, em que o juiz se tenha de ater estritamente à lei”.