por Diogo Duarte | Jurista, Licenciado em Direito e Mestrando em Direito Internacional | diogoduarte@campus.ul.pt

A recente divulgação de várias imagens do interrogatório de José Sócrates, que decorreram no âmbito da fase de instrução do processo judicial, publicamente, conhecido como Operação “Marquês”, transmitidas pela SIC no programa Grande Reportagem, trouxeram a debate, uma vez mais, o crispado tema do segredo de justiça e do interesse público, mediado pelo jornalismo.

Ao final de duas intensas semanas de discussão, o tema continua em debate, dividindo as opiniões daqueles que apoiam, e daqueles outros que se insurgem contra a transmissão daquelas imagens. O tema predominou de tal forma estas semanas que o próprio processo Operação “Marquês” foi relegado para segundo plano.

Num ambiente ainda conturbado, São José de Almeida, Presidente do Conselho Deontológico do Sindicado dos Jornalistas, veio abrir novas brechas. Em declarações ao Público, São José Almeida, afirma, em grosso modo, que os jornalistas têm para com a sociedade um dever de informar, e que considerando o interesse público com que o caso se reveste, torna-se legítimo divulgar tais imagens, as quais, refere, se sobrepõem aos direitos de imagem e até às leis como a do segredo de justiça.

Embora as declarações do mesmo sejam um repisar dos argumentos de sempre, e ainda que as declarações tenham sido prestadas a título pessoal e não na qualidade de Presidente do Conselho Deontológico do Sindicado dos Jornalistas, é necessário elaborar uma breve reflexão sobre as mesmas, trazendo moderação a este debate informal que opõe, na sua essência, duas visões antagónicas: a visão profissional dos jornalistas, e a visão jurídica sobre a atividade jornalística.

Na primeira destas visões, os argumentos reciclam-se, oscilando em torno do “interesse público” do processo judicial, do dever de informação, da liberdade de imprensa, e no papel do jornalismo para com a sociedade. Todos os argumentos que daqui se possam retirar têm, em determinada medida, a sua razão de ser, mas não se pode ignorar, que numa sociedade regida pelo Direito, comportam significativas limitações.

Ora veja-se que, não raras as vezes, se comete um mesmo erro, confundindo aquilo que é mediático com aquilo que reveste um interesse público legítimo. A distinção, nem sempre fácil, centra-se ela próprio naquilo que são os aspetos mais fundamentais do processo judicial. É claro que há mediatismo num processo judicial de grande dimensão, onde, além de um ex-primeiro-ministro tão controverso como José Sócrates, outras personalidades da alta sociedade são acusadas de vários crimes.  Mas mediatismo não se confunde, ainda assim, com um interesse público legítimo. O único interesse público que aqui está em causa, é aquele que dita que este processo deva ser apreciado em estrita obediência à lei, permitindo que durante o seu decurso não ocorram interferências externas que possam prejudicar a sua tramitação, e que o órgão de soberania competente (tribunal) possa apurar os factos de forma justa e imparcial, aplicando a pena correspetiva em relação aos crimes que venham a ser comprovados, se for caso disso. Tudo aquilo que se situe fora deste âmbito, não se qualifica como interesse público, pelo menos, não em sentido jurídico (e é disso que se trata).

De igual modo, ainda que o dever de informar e o compromisso para com a sociedade constituam uma visão bastante romântica que o jornalismo têm para com este caso, a verdade é que qualquer sociedade democrática é regida pelo Direito, e nem o jornalismo se pode eximir a essa premissa. O segredo de justiça ou o dever de obediência a todos obrigam, e nem mesmo a liberdade de imprensa ou o compromisso de informar estão acima da Lei, ou constituem-se eles próprios como valores absolutos. Admitir o seu contrário, abre espaço a uma ideia bastante perigosa: ao jornalismo sempre seria permitido cometer um crime, quando um pretenso “interesse público” o justificasse. É óbvio que em nenhuma democracia do mundo esta ideia é minimamente aceitável ou verossímil.  Por isso, não se pode deixar de encarar com estranheza e septicidade as palavras do Presidente do Conselho Deontológico do Sindicado dos Jornalistas, que afirma ser legítima a transmissão das imagens do interrogatório a José Sócrates, sobretudo, quando à luz da lei portuguesa, tal configura um crime de desobediência. Significa isto que, neste caso, o jornalismo sentiu-se comprometido com a sociedade, mas não com a Lei que rege essa mesma sociedade?

Outra pergunta se coloca neste âmbito: onde paira a presunção de inocência? Acreditando-se ou não na versão da defesa de José Sócrates (matéria que não está aqui em causa), verdade é que a presunção de inocência (acredite-se nela ou não) é uma prerrogativa que é concedida a todos os arguidos, não se vendo razão para que a presunção de inocência do ex-primeiro-ministro seja de menor valor do que aquela que, por exemplo, assiste agora aos jornalistas no processo judicial agora aberto pelo Ministério Público. É inegável que, além de trazer o julgamento à praça pública, e, portanto, fora do local próprio (tribunal), a transmissão daquelas imagens mitigou gravemente a presunção de inocência de vários arguidos. Mais, ao transmitir um conteúdo pré-selecionado, sobre o qual se desconhece os critérios de escolha, e que no seu global contribuíram para criar uma ideia (enviesada) do processo, foi colocada demasiada pressão mediática sobre os magistrados judiciais, o que contraria o interesse público de que este, à semelhança dos demais julgamentos, deva ser julgamento justo e imparcial, baseado na Lei e não na opinião pública.

Por tudo isto considerado, surpreende que ainda haja quem considere haver, na peça jornalista transmitida no programa Grande Reportagem, da SIC, uma espécie de legitimidade à revelia da Lei. Mais estranho é que aquilo que a Lei da sociedade portuguesa comina como crime, não belisque sequer a deontologia jornalística, nem a entidade reguladora emita uma posição firma sobre um tal assunto.

Por isso, continuaremos, neste caso, à procura da deontologia que até agora não foi possível encontrar.