por Diogo Duarte | Jurista, Licenciado em Direito e Mestre em Direito Internacional | diogoduarte@campus.ul.pt

Nunca fui adepto da linha de pensamento político que defende, perante toda e qualquer polémica que se venha a gerar, a demissão imediata dos titulares de cargos políticos. Contudo, se para toda a regra há uma excepção, e se existem limites de decência pública e da boa arte de governar em democracia que não devem ser cruzados, então, não me resta outra alternativa, que não exigir a demissão da Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino.

Três são os casos que, recentemente noticiados por diversas fontes, envolvem directamente a Ministra do Mar, e onde é possível descortinar a existência um conjunto de relações entre o sector público e o sector privado bastante promiscuo e pouco transparente e imparcial.

O primeiro destes casos concerne Ruben Eiras, que depois de ter sido nomeado por Ana Paula Vitorino para o cargo de técnico superior especialista no Ministério do Mar no mesmo mês em que suspendeu as suas funções nos quadros da GALP, foi indicado, já em fevereiro de 2018, para o cargo de Director-Geral das Políticas do Mar, em regime de substituição. Conforme relevado pelo programa Sexta às 9, exibido na RTP, Ruben Eiras, além de ter assessorado a Ministra do Mar, esteve também em Washington, aquando do “Eurasian Energies Futures Initiative do Atlantic Council”, que teve lugar no dia 14 de setembro de 2016, e onde Ana Paula Vitorino haveria anunciado que a prospecção de hidrocarbonetos ao largo da costa de Aljezur iria avançar ao longo de 2017.

Sobre as declarações da Ministra, já tive oportunidade de me pronunciar num outro texto de opinião, onde apontei exactamente a contradição do atual Governo nesta questão e o desdém com que encara a vontade soberana dos algarvios. Porém, o que agora está em causa é a nomeação de Ruben Eiras, e é nesse aspecto que desejo concentrar-me. Este é um dos exemplos clássicos de promiscuidade entre o sector público e o sector privado, onde o decisor é simultaneamente o interessado na decisão. Neste caso, Ruben Eiras suspendeu o exercício das suas funções na GALP com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2016, para logo de seguida, iniciar funções no Ministério do Mar, não existindo qualquer hiato temporal que separe o período de suspensão das suas funções no sector privado do início das suas funções na função pública. Certo de que esta é uma exigência que se estabelece sobretudo para os cargos dirigentes, e não para os técnicos superiores da função pública, nem por isso se pode deixar de reconhecer, perante o caso concreto, que esta é uma situação excepcional. E a sua excepcionalidade decorre do facto de ter sido a própria Ministra a nomear um funcionário dos quadros da Galp, numa altura numa altura que já se verificava existir uma forte contestação por parte dos cidadãos, empresários, e dos municípios em relação à exploração de hidrocarbonetos no Algarve. E não sejamos ingénuos. A nomeação é um culminar de um processo, e não o processo em si. À altura em que este processo de nomeação decorreu, Ruben Eiras exercia funções na GALP. Dito de outra forma, a Ministra do Mar foi literalmente buscar um funcionário à GALP, que se encontrava em efectividade de funções, sem se quer se ter preocupado com o denominado “período de nojo”, e sem ter devidamente em conta o potencial conflito de interesses. Dir-se-á, em sentido contrário, que a Lei não impõe este “período de nojo” em relação aos técnicos superiores e que o conflito de interesses não poderá ser presumido de forma tão abstracta e genérica. Contudo, devo relembrar que nem tudo aquilo que é permito pela Lei, ou pelo menos, não proibido pela Lei, é aceitável ou desejável. A conduta da Administração Pública pauta-se por princípios de transparência, boa administração, razoabilidade e de boa-fé, que são em todo contrários à nomeação de um funcionário de uma das partes interessadas numa questão que opõe as petrolíferas GALP e ENI à região do Algarve, seus cidadãos, empresas, associações e municípios.

Mas mais que isto, resta saber em que circunstâncias é que Ruben Eiras é indicado para o cargo de Director-Geral das Políticas do Mar, dois anos após ter suspendido funções na GALP para iniciar funções no Ministério liderado por Ana Paula Vitorino. Quem conhece os meandros da política na Administração Pública, sabe perfeitamente que a nomeação em regime de substituição nem sempre é potenciada pela vagatura do cargo em questão, não sendo raros os casos em que determinados titulares de cargos públicos são propositadamente afastados para que o lugar em causa possa ser ocupado por outros. Ora, no caso Ruben Eiras, não são totalmente claras as circunstâncias em que esta nomeação ocorreu, e muito menos as circunstâncias que as antecedem. Acresce que, nos termos do n.º 3 do artigo 27.º do Estatuto do Pessoal Dirigente, o qual refere que «A substituição cessa na data em que o titular retome funções ou passados 90 dias sobre a data da vacatura do lugar, salvo se estiver em curso procedimento tendente à designação de novo titular», Ruben Eiras, permanece de forma irregular no cargo de Director-Geral das Políticas do Mar, o que implica desde logo a irregularidade dos actos administrativos entretanto praticados, e dos rendimentos auferidos enquanto titular de um cargo de direcção.

Confrontada com esta situação a Ministra do Mar escusou-se, afirmando que o prazo indicado pela lei é meramente indicativo, além de que o Ministério está neste momento a «(…) identificar as competências do cargo (…)», para que possa promover um concurso para o cargo em questão. E se esta situação já é por si lamentável, não posso deixar de observar que as declarações da Ministra, através do seu Gabinete, são ainda mais deploráveis. Além de ter demonstrado um profundo desconhecimento da Lei, ou pior, de ter procurado contornar a Lei, Ana Paula Vitorino, ao dizer que o Ministério está a identificar as competências do cargo, mais não está a dizer que não conhece quais são as competências de um cargo de direcção para o qual nomeou um funcionário da GALP em suspensão de funções. Diz a sabedoria popular que «O silêncio é de ouro quando a palavra é de prata», e de facto, não posso deixar de sublinhar que Ana Paula Vitorino teria feito melhor figura caso não se pronunciasse sobre este caso.

Todavia esta não é a única nomeação polémica que envolve a Ministra. Segundo avançou igualmente o programa Sexta às 9, emitido na RTP, Ana Paula Vitorino nomeou Lídia Sequeira, para o cargo de Presidente dos portos de Lisboa, Setúbal e Sines. O problema com esta nomeação reside no facto de Lídia Sequeira, ser, à altura da sua nomeação, sócia gerente da Transnetwork, uma empresa criada pela Ministra do Mar em 2011. Embora a nomeação de Lídia Sequeira tenha obtido o parecer positivo da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, segundo avançou a mesma fonte informativa, a qualidade de sócia gerente na empresa criada pela Ministra do Mar foi omitida, tendo renunciado a essa qualidade apenas dez dias depois da nomeação. Ora, a propositura de Lídia Sequeira para o cargo em questão, a qual partiu da própria Ministra do Mar, é contrária à Lei. Conforme demonstrado já pelo Advogado de Direito Administrativo, Dr. Paulo Veiga e Moura, o Estatuto do Pessoal Dirigente não permite que alguém que exerça um cargo numa pessoa colectiva com fins lucrativos seja nomeada para um cargo de Direcção na Função Pública.

Conforme adita o Dr. Paulo Veiga e Moura, e bem, subsiste nesta questão um problema associado à imparcialidade desta nomeação. E se bem que seja sempre legítimo discutir onde se situa a fronteira entre uma nomeação decorrente da confiança política em determinada pessoa para o exercício de um qualquer cargo e uma nomeação decorrente de um favorecimento pessoal, certo é que a existir tal limite, o mesmo foi ultrapassado. Quer se invoquem razões de integridade, transparência, imparcialidade ou até de bom senso, parece-me que é claro que a nomeação de Lídia Sequeira nunca deveria ter tido lugar. Isto não significa que não acredite que Lídia Sequeira é competente ou que seja até a pessoa mais adequada para o cargo em questão, não sendo isso que está em questão. Aquilo que verdadeiramente importa centra-se na nomeação de uma sócia para um cargo de direcção na Administração Pública, e sob esse aspecto, não é possível deixar correlacionar esse facto com um favorecimento pessoal.

E se estes dois casos foram suficientes, per si, para que as pessoas entendam que Ana Paula Vitorino tem extrema dificuldade em distinguir o sector privado do sector público, a notícia recentemente divulgada pelo jornal Público, avançou com um outro caso que envolve a Ministra, Lídia Sequeira, e a empresa em que as mesmas participam. Em causa estão dois ajustes directos celebrados com a Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, à altura liderada por Luís Gomes, ex-aluno de Ana Paula Vitorino, que terá convidado a empresa Transnetwork a apresentar uma proposta na sequência de um procedimento de dois ajustes directos que teriam por objecto a elaboração de um estudo geral de ordenamento da circulação e do estacionamento no concelho de Vila Real de Santo António. Segundo avança a mesma fonte, o primeiro desses ajustes directos foi parcialmente cumprido, e o segundo limitou-se a reproduzir informação que o Município já dispunha, e embora o valor dos dois ajustes directos perfaça um montante total de aproximadamente 56 mil euros, o valor declarado pela empresa da Ministra foi bastante inferior. Todavia, este manto de obscuridade que cobre o município algarvio transfronteiriço parece adensar-se ao ritmo das palavras de Luís Gomes, que afirmou que a Câmara Municipal que liderou terá, em diversas outras ocasiões, colaborado com a empresa da Ministra do Mar, embora a consulta ao portal BaseGov não faça transparer qualquer resquício dessa mesma colaboração. E das duas uma: ou Luís Gomes cometeu uma gaffe, ou pior, celebrou uma outra série de ajustes directos sem que lhes tenha conferido publicidade no portal BaseGov, o que nos termos da lei, é condição de eficácia do contrato, o que a não ser observado determina a sua invalidade. Assim, fica ainda por esclarecer a que tipo de colaboração se estaria Luís Gomes a referir, mas certo é que, uma vez mais, paira sobre a Ministra do Mar uma série de dúvidas e suspeições.

E é perante estes três casos, e pela sua aparente gravidade, que defendo que toda a regra comporta uma excepção, e como tal, creio que a falta de transparência, imparcialidade, e a suspeição que torneia o Ministério do Mar são motivos mais que suficientes para levar à demissão de Ana Paula Vitorino. E realço que em causa não estão suspeições infundadas, genéricas ou abstractas. Aquilo que foi trazido a público sobre a Ministra revela um aspecto sintomático de promiscuidade entre os negócios privados e o sector público. Além disso, as sucessivas declarações emitidas pelo Gabinete da Ministra, que é no fundo uma espécie de porta-voz, demonstram uma incomensurável falta de noção e cultura democrática, além de que fazem subsistir um profundo desconhecimento da Lei. Face a todas estas situações, estou convicto de que Ana Paula Vitorino deverá colocar de imediato o seu lugar à disposição, evitando o constrangimento de ser expurgada do Governo, caso o assunto se venha a adensar para lá da gravidade que já por si comporta.