por Diogo Duarte | Jurista, Licenciado em Direito e Mestre em Direito Internacional | diogoduarte@campus.ul.pt

A águia de cabeça branca é, desde da década de 20 do século passado, um dos símbolos oficiais de muitos organismos norte-americanos. A águia simboliza poder, força e autoridade. Esta é a imagem que os norte-americanos vêem reflectida no seu espelho. Mas para o resto do mundo, tem-se tornado cada vez mais óbvio, que esta águia é afinal um abutre com excesso de auto-estima e de confiança.

Este paralelismo entre a ave (abutre) e os Estados Unidos da América (EUA), não só é possível de ser genericamente traçado, como o mesmo é concretamente identificável. Ora vejamos, num sentido metafórico, e por vezes real, que: ambos surgem em momentos de desgraça e de infortúnio; a sua presença faz antever a morte; e ambos lucram com o resultado com o falecimento de outros seres.

Há, no entanto, uma diferença crucial nesta comparação: enquanto o abutre (ave) tem um papel essencial para o ecossistema, sobretudo, na limpeza e remoção dos tecidos animais em estado de decomposição; os Estados Unidos da América, vão mais além, e a não só se “alimentam” da carcaça, como contribuem para o avançado estado de putrefacção das coisas.

Neste esquema, vamos supor que existe realmente um abutre, de seu nome EUA, e a carcaça de um animal que começa a entrar em estado de putrefacção, e que se identifica como sendo a Venezuela.

A instabilidade política na Venezuela não é certamente uma novidade. Ao longo da sua História mais recente, a Venezuela não só atravessou graves crises políticas, com várias tentativas de golpes de Estado à mistura, como o combate aos cartéis de droga e a luta contra o tráfico internacional têm-se revelado uma forte dor de cabeça para os Governos venezuelanos. A montante, o controlo nacional das reservas de petróleo constitui um novo desafio face às pressões económicas internacionais. Seja de que modo for, a resposta para os problemas da Venezuela surgiu – historicamente – sob a forma de um regime de esquerda que instalou um Estado socialista (no sentido conservador do termo). Como qualquer outro regime fundamentalista, que encara as democracias como inimigas do povo, é uma questão de tempo até o regime revelar os primeiros sinais de putrefacção. E esses primeiros sinais surgiram imediatamente depois da morte de Hugo Chávez, e tornaram-se ainda mais visíveis depois das últimas eleições presidenciais. E quer se seja contra ou a favor de Nicolas Maduro, verdade é que o Direito Internacional tem perspectivado o caso venezuelano como caso meramente interno, ainda que sejam em muito censuráveis as – alegadas – infracções eleitorais. Significa isto que, até ver, a situação política venezuelana é um problema meramente interno e não da comunidade internacional.

Mas se assim o é na teoria, a prática demonstra uma realidade bem diferente. E é aqui, neste contexto, que entra novamente a imagem do abutre (EUA), que vendo uma oportunidade de acelerar o estado de putrefacção do regime de Maduro, apressou-se em actuar. À semelhança das intervenções militares no Iraque, na Síria e na Líbia, uma vez mais, se observa o mesmo comportamento. Em primeiro lugar, a imposição de sanções económicas e embargos comerciais, levando o Estado a uma situação de necessidade e de emergência nacional. Depois, a diabolização dos líderes instalados no poder, através de uma campanha de propaganda constante e mundialmente amplificada. Por fim, a criação de um pretexto para se invadir os Estados: no caso do Iraque, as armas de destruição maciça que o mundo nunca viu; no caso da Síria, os ataques químicos de Bashar al-Assad contra a população; e no caso da Líbia, a opressão de Muamar Kadafi sobre minorias religiosa-políticas – minorias essas que estiveram na origem do Daesh.

Estando as primeiras duas etapas concluídas, falta, por fim, a terceira etapa: o pretexto. E como, apesar de tudo, a situação da Venezuela é diferente da situação dos Estados do médio oriente, o pretexto alcançado foi igualmente diferente: a ajuda humanitária. Porém, a ajuda humanitária é uma tese que se debate para ter acolhimento internacional, uma vez que, quer as organizações internacionais como a Cruz Vermelha se recusam a falar de uma situação de crise humanitária na Venezuela, quer porque o próprio comportamento dos EUA face aos direitos humanos apresenta graves contradições que são bastante aparentes para a comunidade internacional – a título de exemplo: a rejeição de imigrantes, de requerentes de asilo, e de refugiados; a aplicação de medidas dissuasoras para a imigração, como foi o caso da separação de crianças e de adultos, enjaulando as crianças em centros de imigração; etc.

Além disso, é ainda preciso ter em consideração o histórico de casos de “ajuda humanitária” prestada pelos EUA. O caso do Haiti é paradigmático. Em 2010, na sequência de um sismo que destruiu boa parte das infra-estruturas e das vias de comunicação do país, os EUA ofereceram a sua ajuda humanitária a troco da assinatura de vários contratos com empresas de construção norte-americanas. Mergulhado numa situação de emergência nacional, o Haiti apressou-se a pagar estes contratos para a reconstrução do país, recorrendo aos montantes atribuídos pelo Fundo do Petrocaribe. Esgotados praticamente todos esses montantes, e sem que as obras contratualizadas se tenham concretizado, uma onde de protestos cresceu progressivamente, conduzindo o Haiti a uma profunda crise política e social. Na origem dos mais recentes protestos, coloca-se a questão para a qual o povo haitiano não conhece uma resposta: para onde foram parar o dinheiro do Fundo do Petrocaribe? Parte dessa resposta está na ajuda humanitária prestada pelos EUA e nos contratos com as empresas americanas.

É assim que, retomando o caso da Venezuela, se compreende que as motivações não estão, nem nunca estiveram, na ajuda humanitária. Se essa fosse a principal preocupação dos EUA, levantar-se-iam as sanções económicas e os embargos financeiros impostos ao país; retiravam-se as forças armadas das fronteiras da Venezuela; cessavam os exercícios provocatórios de violação do espaço aéreo venezuelano; e diminuía-se a actividade de tráfico de armas que se regista nas fronteiras. Mas o abutre (EUA), sobrevoa sobre a carcaça deste regime pútrido, esperando o momento ideal para descer e se regozijar com os despojos do regime de Maduro. Tais despojos traduzem-se em duas ideias principais: acesso às reservas de petróleo venezuelanas e aumento da influência política nos Estados da América latina.