Algarve: uma região rica ou uma região que gera riqueza?

15:32 - 10/12/2018 OPINIÃO
por Diogo Duarte | Jurista, Licenciado em Direito e Mestre em Direito Internacional | diogoduarte@campus.ul.pt

À primeira vista, parece tratar-se de um mero jogo de palavras, porém, por detrás do sentido literal de cada expressão encontram-se diferentes realidades, que por vezes são até diametralmente opostas. Quando se fala do Algarve, e se pergunta se esta é uma região rica ou uma região que gera riqueza, é necessário atender àquilo que se pretenda qualificar. Uma região rica, por exemplo, gera necessariamente riqueza. Este é, como bem se sabe, o caso da Área Metropolitana de Lisboa, que nela concentra a maior parte dos serviços do Estado e sedia as grandes empresas do sector terciário. Todavia, nem sempre uma região que gera riqueza é, por tal facto, uma região rica. E esse é obviamente o caso do Algarve, o “eterno contribuinte sem retorno”. Gerar riqueza, não significa, pois, aglomerar essa mesma riqueza. Os dois planos não se confundem. Efectivamente o Algarve gera riqueza, riqueza essa que acaba nos cofres do Estado, e cuja distribuição pelo Orçamento de Estado não lhe chega em proporção da sua contribuição.

Confusa, parece assim estar, a Secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho, que no 30.º Congresso da Associação da Hotelaria de Portugal, afirmou que o Algarve é a segunda região mais rica de Portugal. E para elaborar a afirmação, a Secretária de Estado do Turismo lançou uma série de dados estatísticos que, mais ou menos, pretenderam estabelecer uma correlação directa entre os números do turismo algarvio e a realidade económico-social da região.

Pergunto-me se, de facto, o poder económico das famílias e dos trabalhadores do Algarve é equiparável ao poder económico das famílias e trabalhadores de outras regiões. Levado por esta dúvida, decidi analisar os dados estatísticos disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e pela Pordata, certo de que haveria de encontrar dados estatísticos que corroborassem a afirmação de Ana Mendes Godinho. Afinal, se o Algarve é mesmo a segunda região mais rica de Portugal, os dados estatísticos reflectirão com maior exactidão esta realidade. Decidi, pois, analisar os índices dos sectores mais básicos, entre os quais se incluem a saúde, o emprego, a protecção social, e a educação. Imediatamente tornou-se óbvio o padrão estatístico: em todas estas dimensões, o Algarve situa-se abaixo da média nacional.

Ora vejamos ao que me refiro em concreto. Principiando pelo sector saúde, e em particular pelos Hospitais, observa-se que, contrariamente às demais regiões, o Algarve dispõe de 4 hospitais públicos e de 6 hospitais privados (números de 2015). Significa isto, que o investimento público, em termos de estrutura hospital, é o inverso daquilo que se verifica em Portugal, onde, regra geral, o número de hospitais públicos supera o número de hospitais privados. Por outras palavras: o nível de acesso aos serviços públicos de saúde pelos algarvios é menor do que aquele que se regista noutras regiões. Em alternativa, resta, pois, considerar o sistema de saúde privado, que implica necessariamente maiores gastos económicos. Voltando aos números de 2015, se considerarmos os seguintes índices de saúde, vemos como o Algarve se situa abaixo da média nacional: Enfermeiros por cada 1 000 habitantes – Algarve (5,7) / Portugal (+/- 7); Médicos por cada 1 000 habitantes – Algarve (3,7) / Portugal (+/- 4,2); Internamentos nos hospitais por cada 10 000 habitantes – Algarve (8,9) / Portugal (+/- 11); Camas por hospital por cada 1 000 habitantes – Algarve (2,6) / Portugal (+/- 3,5). Disto, resulta claro que o sistema de saúde público da região do Algarve é deficitário, e a sua lacuna abriu espaço à instalação do sector privado. Em última instância, isto significa que o acesso à saúde no Algarve é mais dispendioso, porquanto, é intermediado por um serviço público deficitário, e por uma oferta privada que, como veremos, não é compatível com os rendimentos dos algarvios.

Num outro plano, atendemos ao emprego, um dos factores mais importantes e básicos para o desenvolvimento de qualquer região. Neste domínio, os números do INE de 2015, indicam desde logo que a percentagem de desemprego no Algarve (12,5%) é superior à média nacional. Considerando índices concretos, como o nível de disparidade no ganho médio mensal por nível de habilitação e por sector de actividade, verifica-se que o Algarve fica novamente aquém da média nacional. Por exemplo, enquanto que a nível nacional a disparidade no ganho médio mensal por nível de habilitação se situa perto dos 40%, no caso do Algarve, essa percentagem desce para 23,2%. Isto significa, desde logo, que o seu nível de habilitação (ensino básico, ensino secundário ou ensino superior) dos algarvios não se reflecte com propriedade nos salários auferidos. Do ponto de vista estritamente remuneratório, prosseguir estudos superiores não é um factor compensatório no mercado de trabalho do Algarve, quando no restante cenário nacional esse valor chega aos 40% em termos da disparidade das remunerações dos trabalhadores. Quanto ao rendimento médio dos trabalhadores, os números são tendencialmente esclarecedores. A maioria dos trabalhadores algarvios recebe um salário que se situa entre os 797 e os 885 euros brutos, muito abaixo da média que se regista na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, por exemplo.

Prosseguimos para a protecção social, e uma vez mais, encontramos o Algarve abaixo das médias nacionais. Neste caso em particular, considera-se o valor médio anual dos benefícios sociais, e o cenário que se vislumbra é o seguinte: Pensões de invalidez – Algarve (4 628 €) / Portugal (+/- 5 100 €); Pensões de velhice – Algarve (5 239 €) / Portugal (+/- 5 900€); Pensões de sobrevivência – Algarve (2 707 €) / Portugal (+/- 3 000 €); Subsídio de desemprego – Algarve (2 383 €) / Portugal (+/-  3 200€); Subsídio de doença – Algarve (774 €) / Portugal (+/- 850 €). Da análise aos números do INE, referentes a 2015 (os mais actualizados), resulta, pois, que o apoio prestado aos algarvios por via da segurança social, é inferior à media nacional, o que desde logo, demonstra um dado importante, sobretudo no que respeita ao subsídio de desemprego. Sendo o subsídio de desemprego calculado, entre outros factores, em função do período de trabalho e do nível remuneratório, tal significa que os algarvios recebem valores de remuneração mais baixos que a média nacional, e que o período de trabalho é mais curto do que essa média. Por outras palavras, e conhecida a realidade do mercado de trabalho algarvio, caracterizado pela sazonalidade, é possível concluir-se que a precaridade caracteriza igualmente o mercado de trabalho do Algarve.

Esta análise termina no último dos quatro princípios mais básicos enunciados: a educação. Em consonância com os sectores anteriores também aqui é possível retirar-se importantes dados. Por exemplo, a variação média anual do índice de preços no consumidor nas classes de despesas referentes à educação é mais do dobro da média nacional, com uns arrebatadores 1,80%. A conclusão é clara, o aumento anual das despesas referentes à educação é alto, e isso impacta a economia das famílias. Quanto à taxa de analfabetismo, o Algarve posiciona-se na terceira posição das regiões de Portugal continental, somente ultrapassado pelo Alentejo e pelo Centro. Quanto ao número de alunos matriculados no ensino superior, o Algarve desce para a última posição, e é mesmo, em Portugal continental, a região com menos alunos matriculados no ensino superior. O Algarve é também a região de Portugal continental que apresenta o mais baixo nível de escolaridade, o que não surpreende, considerando as lacunas evidenciadas em todos os outros domínios.

Mas, se isto não bastasse para demonstrar para evidenciar o óbvio, atente-se ao poder de compra dos algarvios. Segundo os dados do INE, e embora Faro figure como o terceiro município com maior poder de compra, ultrapassado por Lisboa e pelo Porto, em termos regionais, verifica-se que o Algarve indicador do poder de compra (IpC) é inferior ao valor-referência para Portugal. No cômputo geral, a conclusão é óbvia: no Algarve, o acesso à saúde é mais dispendioso e pautado por uma oferta pública deficitária; o nível de desemprego é alto; os apoios providenciados pela segurança social são inferiores à média nacional; e relativamente à Educação verifica-se ainda um baixo nível de escolaridade, acompanhado por uma galopante variação anual das despesas familiares relacionadas com este sector.

Considerados os números do INE relativamente aos sectores básicos, parece-me, pois, que a esta é uma realidade que não se compagina com a realidade de uma região rica. Por outro lado, verdade é que a região produz bastante riqueza, sobretudo, através das receitas do turismo. E o turismo tem sido utilizado no discurso político para maquilhar a realidade económico-social das famílias algarvias. Este discurso desconsidera que as receitas que se verificam no turismo devem-se, em grande parte, ao recurso a mão-de-obra barata, o que inevitavelmente se traduz numa política laboral baseada no salário mínimo, e que muitas das vezes, é ainda caracterizada pela evasão fiscal fortemente impulsionada pelos ciclos sazonais do turismo algarvio. Dito de outra forma: é verdade que o turismo é uma importante fonte de riqueza da região, mas tal riqueza é essencialmente absorvida pelo sector privado e pelo Estado. Para as famílias algarvias, pouco ou nada resta. Em suma, a riqueza produzida pela região, não fica região, nem nela é investida. E além da acutilante falta de investimento público, verifica-se que nos últimos anos, as políticas de Governo, castraram a mobilidade intra-regional dos algarvios, nomeadamente, através da introdução de portagens na Via do Infante, e no desinvestimento público da linha férrea.

Assim, e tal como a maioria dos algarvios, desconheço a que Algarve estaria a Secretária de Estado a referir-se. Por momentos, pensei ainda que o Orçamento de Estado para 2019 tivesse sofrido uma alteração de última hora e que passasse a incluir uma série de investimentos sérios no Algarve, ou que os chineses, a quem Ana Mendes Godinho tão carinhosamente solicitou que nos utilizassem como cobaias, estivessem dispostos a despejar rios de dinheiro na região. Mas logo me apercebi, que dada a improbabilidade de ambos os cenários, talvez, todo este caso seja apenas, mais um dos desvaneios da Secretária de Estado do Turismo.