Veganismo e tradicionalismo alimentar

11:30 - 22/03/2020 OPINIÃO
José Manuel Sousa-Rico | Mestre em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Por si só, o termo «vegano» é um adjetivo e substantivo masculino, derivado do substantivo masculino veganismo, uma ideologia que advoga o boicote aos produtos de origem animal, e à atividade em que os animais possam ser usados ou explorados de forma esforçada e continuada. Na sua essência o veganismo defende um regime alimentar de cariz vegetalista.

Dito isto, na gíria popular, um ser vegano, é alguém que não utiliza ou não consome produtos derivados, ou processados industrialmente, de animais, mas apenas se alimenta de produtos de origem vegetal, e nem sequer come qualquer espécie de carne, ovos, mel ou lacticínios. Mas então, no nosso caso pessoal, ao procurarmos comer de forma saudável, mas se não adotamos este fundamentalismo espartano prescrito pelo veganismo, ao não ingerirmos apenas estes alimentos, de facto e na síntese da sua pureza, torna-se impossível sermos considerados um verdadeiro aderente vegano – na sua pureza filosófica original.

No fundo, não foi impunemente que nascemos num período histórico de Portugal, causticado na parcimónia dos tempos de escassez alimentar, verificados no durante, e a seguir à 2.ª Guerra Mundial, a que estivemos sujeitos com senhas de racionamento, e que quase de repente, num breve hiato do ciclo alimentar (pouco mais de quarenta anos), hoje em dia troquemos esses hábitos alimentares dos nossos avós, a que de forma hodierna e pomposa classificam de “dieta mediterrânica”, mas que, por via das circunstâncias, sem novidade alguma, já era praticada de forma obrigatória (pela escassez) por todos nós algarvios, ao longo dos séculos; felizmente, seria depois reforçada com a novidade dos novos alimentos que vieram nas caravelas dos Descobrimentos, que mitigariam a fome endémica que grassava por toda a Europa, pejada de pestes, as quais se combateram com as especiarias trazidas pelos portugueses.

Em resumo, pertencemos a um período temporal, em que apenas comíamos as primícias na altura própria do tempo das favas e dos griséus (ervilhas), couves, alfaces, tomates, pimentos, batatas (doces e redondas), laranjas, cerejas, tangerinas, e através deste modo comum, depois de milhares de anos no Algarve, assim, sem estufas (porque o plástico não era conhecido) se cumpriam os ciclos ditados pela mãe natureza: hoje, a agricultura moderna cheia de agroquímicos e pesticidas, é quase toda realizada de maneira esforçada em estufas.

No tocante à carne, comia-se uma galinha (dura) quando ela deixava de pôr ovos; o galo era comido em épocas festivas pelo Natal, Entrudo e Páscoa. O porco constituiu a grande despensa de todas as casas (pobres e remediadas), dependendo da bolsa de quem os podia criar no pocilgo; matava-se em dias (de lua nova) para a carne não se estragar; a este propósito, existem pessoas que não acreditam nesta ciência popular, comprovada ao longo dos milénios –, e no entanto é rigorosamente verdade. Os meses preferenciais da matança do porco em casa, iam de novembro a fevereiro que eram os mais frios. Do porco nada se perdia e tudo se aproveitava, com os presuntos e as linguiças a fazer as delícias de toda a gente. Os chouriços defumavam-se dependurados em varas de lenha de sabugueiro, suspensas em várias idas e alturas, por cima da fornalha onde se cozinhavam os alimentos de todos os dias. O toucinho, outro importante alimento fornecedor de gordura animal, era conservado em sal, numa arca de madeira, até que ele, lá para agosto, com o calor sarnasse.

De uma forma generalizada, estes eram os produtos alimentícios básicos dos costumes gastronómicos de sobrevivência das classes mais desfavorecidas da população algarvia, e de uma maneira geral – em todo o país  –, sujeitos à trilogia base da alimentação algarviana que ainda se mantém fixado no “pão de trigo, azeite e vinho”, em que ninguém morria à míngua.

Hoje em dia, quase todo este paradigma deixou de fazer sentido, porque as pessoas com rendimentos substanciais e mais organizados, quando querem abastecer-se de alimentos, pura e simplesmente vão a uma superfície comercial, onde a fartura de produtos à disposição do freguês, é quase inquantificável.

Em síntese, e por dualidade de uma alimentação espartana científica denominada “vegan”, à base de produtos semeados sem adubos químicos, nem mondas químicas, todos os outros que têm feito parte da nossa cadeia alimentar tradicional ao longo dos últimos cinquenta anos, ao que dizem, são os principais responsáveis pelo aumento de doenças cancerígenas, e, outras. Então, quais serão as medidas que teremos de passar a adotar, de forma a alimentar-nos mais saudavelmente...? Responda quem souber escolher racionalmente, ou quiser... Sugestões de toda a ordem mercantilista não faltam; o difícil reside na escolha da oferta.

 A alimentação também é, uma questão de saúde pública –, tudo começa pela boca.