Uma estrutura piramidal com degraus, rodeada de paredes com pintura decorativa, esteve cerca de 200 anos escondida na capela-mor da Igreja de Santa Maria do Castelo, em Tavira, uma das cidades mais religiosas do Algarve, com 21 igrejas.
A estrutura, uma espécie de pedestal, designada por trono, é habitualmente usada para exibir aos fiéis a hóstia consagrada, mas, neste caso, nunca chegou a servir esse fim, já que a sua execução foi abandonada antes de estar terminada, e tapada. À sua frente foi colocada uma vitrina com a escultura de Santa Maria, padroeira daquela igreja.
A descoberta, no final de outubro, coincidiu com o arranque das obras naquela igreja, classificada como monumento nacional, o que levou a que se reparasse nas particularidades e símbolos inscritos no teto de um pequeno e escuro compartimento, contou à Lusa o pároco de Tavira.
“Esta descoberta foi fruto do facto de nós termos de arrumar e preparar uma série de coisas para a obra que se ia iniciar e, provavelmente, vai haver outras descobertas daqui em diante”, explicou Miguel Neto, notando que a igreja, afetada pelo terramoto de 1755, já foi alvo de várias intervenções.
O achado, que se encontra por detrás do retábulo da capela-mor, é um pequeno compartimento com um trono, elemento onde se expunha o Santíssimo Sacramento, cujo teto está pintado com símbolos alusivos ao culto da Eucaristia - cachos de uvas e trigo, a simbolizar, respetivamente, o vinho e o pão -, assim como com a inscrição da palavra Deus em hebraico.
Para aceder à estrutura é preciso atravessar uma das portas quase sempre encerradas do retábulo principal e subir uma pequena escadaria, para depois se encontrar o compartimento em madeira, durante tanto tempo escondido nas costas do altar.
Segundo Daniel Santana, historiador de arte, supõe-se que a estrutura era inicialmente para ser um retábulo eucarístico, ideia que “foi abandonada quando este ainda estava a ser feito, porque há falta de pintura em algumas zonas”, além do facto de o culto da Eucaristia ter sido “deslocado da capela principal para a capela lateral” da igreja, onde se encontra um retábulo eucarístico sensivelmente da mesma época.
“Neste caso, foi uma surpresa, porque é um achado que nos vem dar mais informação sobre a origem deste retábulo e a própria história da igreja. No fundo, vem acrescentar património ao património que já sabíamos que existia e vem levantar algumas questões”, referiu o historiador, que já trabalhou em Tavira, mas está agora ligado ao Museu Municipal de Faro.
O próprio retábulo da capela-mor é um dos poucos de arquitetura simulada existentes no Algarve, ou seja, trata-se de um retábulo “fingido”, em ‘trompe l’oeil’, em que se recorre à pintura ilusionista, dando uma ideia a três dimensões de colunas de mármore e outros elementos decorativos. Está atribuído ao pintor algarvio Joaquim Rasquinho.
“O trono e as paredes têm pintura ornamental com tons e formas muito características desta época. Estamos a falar de finais do século XVIII, em que o tardo-barroco e o rococó são estilos dominantes - ainda que nesta igreja já se respire um ar neoclássico -, com cores mais suaves, azuis e rosas”, descreveu Daniel Santana.
O achado vai agora ser alvo de uma intervenção de restauro, sendo que, segundo a conservadora restauradora Marta Pereira, o seu estado de conservação é “surpreendente”, pelo que não será difícil conseguir manter o que apelida de “documento histórico”.
Segundo a técnica da ArtGilão, empresa criada pelas igrejas de Tavira para recuperar, salvaguardar e dinamizar o património religioso, a “policromia está bem conservada” e apenas a madeira “está em muito mau estado”, devido à humidade e ao “ataque biológico” do caruncho, inseto que corrói a madeira.
A prioridade será agora estabilizar os materiais a fim de travar o processo de degradação, estando também prevista “alguma reintegração cromática para tentar unificar a imagem e ficar agradável à vista”, explicou.
A Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo foi fundada pela Ordem de Santiago após a tomada de Tavira aos mouros, em 1241, ocupando o lugar da antiga mesquita.
Ao longo dos séculos conheceu várias campanhas de obras, tendo o terramoto de 1755 provocado graves danos no templo, justificando a sua reconstrução a partir de 1790.