O primeiro transplante de fígado em Portugal aconteceu há 30 anos no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, uma cirurgia revolucionária para a época e que desde então salvou a vida a alguns milhares de doentes terminais.
Foi no dia 23 de setembro de 1992 que a equipa liderada pelo cirurgião João Pena fez o primeiro transplante de fígado numa doente de 46 anos que sofria da “doença dos pezinhos” e se encontrava numa situação grave. A cirurgia demorou cerca de oito horas e correu bem, mas a doente morreu três anos depois.
Em outubro desse ano, era operada a segunda doente na Unidade de Transplantes do Hospital Curry Cabral, que faz parte do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC). Foi operada aos 59 anos devido a uma cirrose biliar primária e o fígado “novo” que recebeu permitiu que ainda esteja viva e prestes a completar 90 anos.
Desde então, já foram realizados mais de 2.500 transplantes hepáticos no Curry Cabral, acompanhados de muitas “histórias extraordinárias”, disse à agência Lusa Hugo Pinto Marques, atual diretor do serviço de cirurgia geral do CHULC e coordenador do Centro Hepato-Bilio-Pancreático e de Transplantação, criado em 2005 pelo cirurgião Eduardo Barroso, que dirigiu o serviço até à sua reforma, em 2018.
“Temos histórias de doentes que estão vivos há muitos anos”, alguns foram transplantados com doenças que na altura havia dúvidas se tinham legitimidade para serem operados, disse o cirurgião, ressalvando que também há histórias menos felizes. Apesar disso, considerou Hugo Pinto Marques, “a unidade tem uma taxa de sucesso muito grande”, com 75% dos doentes vivos cinco anos após o transplante.
Este dado é “um motivo de orgulho” para Portugal e “para o SNS também”, considerou.
Por ser uma cirurgia de “grande complexidade”, só é proposta a doentes terminais, adiantou.
Ao longo das três décadas, foram transplantados alguns milhares de doentes com doença dos pezinhos, cirrose de várias causas, cancro do fígado e por outros tipos de cancro que se alojam também no fígado. Muitas vidas foram salvas.
Quanto ao transplante pediátrico, disse que é raro, cerca de 10 por ano, sendo apenas realizado em Coimbra. Já nos jovens não são tão raros. “As hepatites fulminantes, as falências hepáticas agudas são situações emergentes (…) em que os transplantes são mais difíceis e em que a taxa de sucesso também é mais baixa”, referiu.
Mas foram muitos os desafios enfrentados no início pelos cirurgiões João Pena e Eduardo Barroso, pioneiros do transplante no Curry Cabral, e que foram para o estrangeiro aprender com quem já tinha experiência. Segundo Hugo Pinto Marques, debaterem-se sobretudo com problemas muitas vezes técnicos, relacionados com a dificuldade da cirurgia que “é difícil, longa”, podendo durar às vezes 20 ou mais horas.
“Os nossos predecessores, a quem devemos imenso, trilharam esse caminho, aprenderam tudo isso. Tiveram as dificuldades que tiveram que ter nos primeiros doentes, que foram sendo ultrapassadas com o tempo”, disse o cirurgião, que está há 18 anos no centro, um dos maiores da Europa, que faz entre 100 a 140 transplantes por ano. Atualmente, é o centro hospitalar em Portugal com maior número de doentes transplantados ao fígado, sendo que Coimbra contabiliza cerca de 1.600 e o Porto cerca de 1.550.
Além das “grandes dificuldades” técnicas dos transplantes, existem as complicações ao nível da anestesia, dos cuidados intensivos e, sobretudo, ao nível da rejeição do órgão, agora “muito menos frequente” devido à “evolução enorme nos medicamentos e na medicação” utilizados para evitar esta situação.
No serviço, a azáfama é grande, como contou à Lusa a enfermeira Anabela Rodrigues, há 19 anos na unidade.
Ali, são internados os doentes transplantados durante menos de 15 dias, quando a cirurgia corre bem, mas também os que têm de ser reinternados devido a complicações. Nessas situações, o tempo de internamento é mais longo.
Após a alta, os doentes continuam a ser acompanhados na consulta, o que cria uma ligação entre os doentes e os profissionais.
A enfermeira contou que muitas vezes os doentes vão à consulta e depois os vão visitar para “matar saudades, como eles dizem”, havendo sempre “um agradecimento eterno”.
“Nós estamos aqui por eles e, portanto, a felicidade ou a tristeza deles também passa a ser a nossa”, disse Anabela Rodrigues, com um brilho nos olhos.
Hugo Pinto Marques enalteceu o trabalho realizado pelos cirurgiões pioneiros que criaram uma estrutura e uma equipa de médicos, enfermeiros e profissionais de saúde em geral que transformaram “a experiência de um pequeno serviço de cirurgia há 30 anos numa estrutura gigantesca”.