Mediação imobiliária «mudou radicalmente» e a tecnologia deu empurrão. Histórias e vivências de quem andou e continua no terreno.
“Passei de outro século para este e a experiência que tenho faz com que sempre soubesse ultrapassar as dificuldades”. Aos 74 anos, Jaime Fernandes olha para o retrovisor e enche-se de orgulho ao afirmar que praticamente nasceu na atividade da mediação imobiliária. “O refúgio no imobiliário foi sempre o que resistiu melhor ao longo das várias crises que o setor passou”, conta ao idealista/news um dos sócios fundadores da Europredial, que aderiu, entretanto, à ComprarCasa. A propósito da celebração dos 49 anos do 25 de Abril de 1974, revisitamos, com a ajuda de quem andou e anda no terreno, o universo da mediação imobiliária em Portugal.
Crise do “subprime”, Troika e pandemia. Estes são alguns dos desafios com que Portugal se deparou no passado recente, a que se juntaram agora a guerra na Ucrânia e a consequente alta taxa de inflação e subida de juros. Desafios esses que põem à prova o negócio da compra, venda e arrendamento de casas. Antes do virar do século e do milénio, contudo, houve outros obstáculos por superar, estando a tecnologia (sempre) na vanguarda da evolução. O que mudou no negócio da mediação imobiliária desde que Portugal vive em democracia, sempre com a habitação no centro dos problemas sociais? A pergunta a vários dos especialistas mais veteranos e experientes do país, abre caminho a um sem fim de respostas, que o idealista/news partilha agora.
Jaime Fernandes fundou a Europredial juntamente com Naves Osório em 1982. Mas entrou no setor para trabalhar antes disso. “Comecei na maior empresa da altura no país, A Confidente. A aprendizagem, ao contrário de hoje, era feita vivenciada na experiência, passando por vários departamentos, aprendendo as várias etapas a prosseguir”. A Confidente era, destaca, uma das cinco imobiliárias a operar no país no pós-25 de Abril.
“Na altura havia uma dinâmica de poupanças de emigrantes muito viva, os portugueses que emigravam tinham como objetivo investir depois em Portugal. Isto nos anos 80. E depois do 25 de Abril muitos empresários de destaque e pessoas de referência foram para fora do país e houve que fazer uma inversão de hábitos e de adaptação. Enquadrou-se também muito bem a vivência das pessoas que vieram das ex-colónias, sendo que muitas precisavam de habitação, como é óbvio. Houve apoios financeiros para que imóveis fossem comprados por inteiro já na fase final de construção para alojar as pessoas, o que dinamizou o mercado face à falta de investidores tradicionais. Atualmente, devia ser feito algo similar, com os terrenos e edifícios públicos vazios a ter um aproveitamento diferente”, indica.
Que diferenças houve na mediação imobiliária desde o 25 de abril até hoje?
Na altura, lembra Jaime Fernandes, não havia as ferramentas tecnológicas que hoje existem, muito menos redes sociais. “Houve uma evolução qualitativa nas últimas duas décadas”, constata, enaltecendo também a aposta que foi e é dada na formação.
“Hoje trabalha-se muito com ferramentas tecnológicas, com redes sociais, etc., o que permite uma mobilidade completamente diferente. Esta é uma grande diferença. As ferramentas ao dispor e os formadores especializados são muitos. Quem quiser desempenhar a atividade, se for focado e estiver atualizado nas dinâmicas de aprendizagem e dos conhecimentos que são necessários, sobre tramitação, por exemplo, pode ser mais fácil, têm é de ter vontade e foco”, salienta.
Uma opinião de certa forma partilhada por Armando Alves, que trabalha na mediação imobiliária desde 1983, tendo criado a sua empresa, a Imopredial, em 1991 – passou depois, em 2009, para o universo da C21 Portugal, onde tem duas agências, em Almada e no Laranjeiro.
“[Nos anos 1980] As pessoas dirigiam-se às agências e atualmente o comprador utiliza muito os portais imobiliários, diretamente nas páginas das redes ou em portais, como o idealista. Hoje o comprador pesquisa na internet os imóveis em vez de se dirigir aos locais. O online domina completamente o mercado”, analisa.
Aos 72 anos, o especialista considera, no entanto, que “nada dispensa” o contacto visual ou as visitas presenciais a imóveis, apesar da evolução tecnológica existente, e deixa um conselho aos atuais consultores imobiliários: “É muito importante, a partir de certa altura, o comercial trabalhar a sua marca pessoal, que vai fazer com que tenha uma base de dados, de contactos, muito forte. E quem tiver uma base de dados mais completa e maior mais possibilidades tem de fazer negócios e de angariar quer clientes compradores quer vendedores”.
“A formação é essencial”
Também Armando Alves, que soma quase tantos anos de experiência no imobiliário como os da democracia em Portugal, diz não ter dúvidas de que a aposta na formação é “essencial” rumo ao sucesso no setor: “Aqueles que querem ser profissionais a sério é que podem mudar o paradigma do mercado imobiliário. Não se pense que neste negócio se ganha dinheiro de forma fácil. É uma atividade que requer muita formação, ética, profissionalismo e transparência. Os consultores têm de ter um conhecimento abrangedor do próprio mercado e os clientes devem ser clientes para a vida, devem ser acompanhados”.
Sendo este um negócio de pessoas para pessoas, o fundador da Imopredial diz não ter dúvidas de que por muita tecnologia que venha a surgir no mercado, “a confiança vem do contacto pessoal com o comprador ou com o vendedor”. “E quando se é referenciado é porque as outras pessoas ficaram satisfeitas. Profissionalismo, transparência e honestidade são os valores essenciais. É preferível perder um negócio que mentir a um cliente”, reconhece.
Será, então, que é mais fácil ser consultor imobiliário agora, 49 anos depois do 25 de Abril de 1974, quando comparado com o momento após a revolução dos cravos? Armando Alves considera que não, visto que existem “outras exigências” e que “o comprador e o vendedor estão mais esclarecidos”, tendo outro nível de conhecimento e fazendo outro tipo de perguntas. “Têm outro nível de necessidades, e isso requer muito mais profissionalismo do consultor imobiliário”, remata.
Após a revolução dos cravos não havia internet nem… concorrência
Outro dos especialistas da “velha guarda” consultados pelo idealista/news é Fernando Rua, que começou a dar cartas no ramo imobiliário em 1976, em nome individual. Tinha na altura 28 anos e agora tem 75. “Fundei a empresa Fernando Rua Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda. e em 2010 criámos a marcar Casas do Rua”, explica.
Salientando que mudou muita coisa na profissão de consultor imobiliário nos últimos 50 anos – “Não havia computadores, não havia internet, não havia concorrência e o contato com os clientes e com as entidades envolventes (bancos, camaras municipais, Finanças, conservatórias, etc.) era direto –, Fernando Rua considera, também, que não é mais fácil, atualmente, ajudar a vender, comprar ou arrendar uma casa. “O cliente é mais exigente, tem mais informação e existe mais concorrência”, justifica.
O responsável é da opinião de que houve “uma evolução normal” no setor do imobiliário, relacionada com a vida em democracia e o aparecimento em força da tecnologia. Mas sustenta que continua a ser crucial fazer visitas presenciais aos imóveis, bem como conhecer os clientes e falar com eles cara a cara: “Por mais informatizado que esteja o negócio nada substitui a visita física aos imóveis, o contato direto com os clientes, é importantíssimo a empatia com os clientes”.
Arrendamento perdeu força com o passar dos anos - apesar de estar a renascer
Portugal é um país de proprietários, tendo a cultura de ter casa própria ganho força nos últimos anos quando comparada com a de ser inquilino. Mas será que foi sempre assim, ou o cenário mudou na viragem do século e do milénio?
“Fui responsável, na A Confidente, da área de arrendamentos. Arrendava normalmente 300 a 400 casas por mês. Nunca menos que isso. Não era difícil arrendar casa. As rendas eram condicionadas/limitadas até 1.100 escudos”, relata Jaime Fernandes.
“Na altura, muitos investidores compravam prédios em fase de finalização para os destinarem ao mercado arrendamento. E não havia IVA. Isso era uma coisa que fazia agora, acabar com o IVA na construção e em todas as componentes ligadas ao setor. Ia aumentar bastante a oferta de habitação e o paradigma mudava completamente”, acrescenta.
Fazendo a ponte com o presente, o sócio fundador da Europredial traça um cenário completamente diferente: “Hoje, para qualquer português, comprar ou arrendar casa em Lisboa é quase impossível, porque houve fenómenos, sobretudo nesta última década, que alteraram todo o sistema e todo o equilíbrio. O que contesto é não haver em alternativa soluções para criar habitação que resolvessem esta falta de habitação para os cidadãos nacionais a custos controlados”, conclui.
Armando Alves responde na mesma linha, destacando que era mais fácil arrendar casa antigamente, na década de 80/90, que agora. “Atualmente, mais de 70% dos portugueses são proprietários, e mais de 65% têm a casa paga. Mudou o paradigma, porque talvez houvesse mais arrendamento na altura. As pessoas com algum dinheiro construíram prédios inteiros e arrendavam os apartamentos. Neste momento há pouca oferta face à procura, e os valores das rendas são muito elevados, superiores aos de um crédito habitação, com casas a preços razoáveis”, justifica o fundador da Imopredial.
Fernando Rua, da Casas do Rua, é da opinião que se vendem agora mais casas porque as pessoas trocam mais de habitação: “As taxas de juro, apesar de estarem agora mais altas, estão mais baixas que nos anos 80/90, o que facilita todo o processo de compra. Relativamente ao arrendamento, existe elevada procura, principalmente por emigrantes”.
Nos Açores as pessoas vendiam casas “por palavra”
“Já estou nisto há 48 anos”, começa por dizer Manuel António Amaral Machado, fundador e sócio-gerente da imobiliária A.Machado, localizada em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel (Açores).
Do alto dos seus 70 anos, o responsável conta que se assistiu a uma “mudança radical” na área da mediação imobiliária com o passar dos anos, e dá alguns exemplos concretos de como era a atividade nos Açores “antigamente”, como faz questão de frisar. “O mercado imobiliário, embora existisse antes de 1974, era muito reduzido. Em 1982, quando vim para aqui, as escrituras não eram feitas por computador, era à mão. E era muito raro fazer publicidade das casas, tradicionalmente vendiam-se casas entre as pessoas, mas por palavra. O povo, o que tinha de mais nobre era a palavra”, revela.
Mas os anos passaram e a tecnologia fez o seu trabalho. “Quando vieram os computadores foi tudo completamente diferente, uma pessoa já era suficiente para marcar escrituras, uma já fazia tudo. Antes disso era preciso três pessoas, por exemplo”, diz, revelando que a A.Machado foi a primeira mediadora açoriana a ter uma página na internet, em 1998.
A verdade é que atualmente, com todas as mudanças que houve no setor ao longo dos quase 50 anos em que Portugal vive em liberdade, um consultor não é um mero vendedor de casas, pelo contrário, “tem de ter conhecimento de várias áreas”. “E se não tiver, tem de ter formação. Isto neste caso deu uma grande volta, mas para melhor”.
Fazendo um retrato ao panorama atual da mediação imobiliária nos Açores, Manuel António Amaral Machado sublinha que, a partir de 2015, assistiu-se a uma transformação em São Miguel, à semelhança do que sucedeu no continente. “Quando é que era possível vender casa a estrangeiros? Duas ou três vezes por ano. Hoje praticamente todas as semanas temos um estrangeiro interessado em comprar, ou por telefone, ou por email”, conclui.
Por: Idealista