Novo diploma que simplifica licenciamentos tem efeitos nas transações. Explicamos como famílias e investidores se devem proteger.
Em Portugal, há falta de habitação disponível e a custos acessíveis. E esta é uma questão urgente que o novo simplex dos licenciamentos urbanísticos se propõe a resolver, ajudando a colocar mais casas no mercado através da reconversão de imóveis comerciais em habitação, da eliminação de licenças ou ainda mediante a uniformização e simplificação dos licenciamentos nas autarquias. Este diploma - que o Presidente da República promulgou no dia 4 de janeiro limitando as simplificações às que tenham “repercussão direta na promoção de mais habitação" - traz várias novidades também no que diz respeito à compra e venda de casas, já que deixa de ser obrigatório apresentar, por defeito, a licença de utilização na hora da aquisição.
Mas esta nova prática pode trazer perigos para as famílias e os investidores, uma vez que correm o risco de assumir a compra de casas com construções ilegais e verem-se depois inibidos de conseguir contratar um crédito habitação, além de outros eventuais problemas, avisa Jorge Batista da Silva, Bastonário da Ordem dos Notários, em declarações ao idealista/news.
Foi esta segunda-feira, dia 8 de janeiro, que foi publicado em Diário da República, o diploma que procede à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria. Trata-se do Decreto-Lei n.º 10/2024, que vem “eliminar licenças, autorizações e exigências administrativas desproporcionadas que criem custos de contexto”, numa lógica de “licenciamento zero”. A grande maioria das 26 medidas, que trazem alterações em matéria de licenciamento urbanístico, entram em vigor no próximo dia 4 de março, mas algumas já têm efeitos desde 1 de janeiro de 2024.
É o caso da medida que interfere diretamente na compra de casas, e é aplicável desde o primeiro dia deste ano. Em concreto, “simplificam-se as formalidades relacionadas com a compra e venda do imóvel, eliminando formalidades que não representam valor acrescentado”. Isto quer dizer que no momento da celebração do contrato de compra e venda do imóvel deixa de ser obrigatório exibir ou provar a existência da ficha técnica de habitação e da autorização de utilização. Acontece que esta mudança na legislação apresenta riscos para as famílias, bem como para os investidores, que devem ser tidos em conta.
Quais os riscos de comprar casa sem exigir licença?
Para o Bastonário da Ordem dos Notários, esta medida “irá permitir a entrada, eventualmente, de milhares de fogos no mercado da habitação”, porque “há muitos milhares de imóveis no país sem licença de utilização, que foram construídos ilegalmente e que nunca foram legalizados (total ou parcialmente)”, começa por explicar ao idealista/news.
Mas todo este cenário também requer uma maior atenção por parte de quem decide adquirir uma habitação. Com a eliminação da exigência legal da verificação de uma licença de utilização, quem vai comprar casa fica, no fundo, menos protegido pela legislação. E, de acordo com Jorge Batista da Silva, as famílias que estão a pensar comprar casa correm os seguintes riscos:
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Comprar uma casa ilegal (ou com obras ilegais), que pode vir a ser demolida parcial ou totalmente, se houver queixas dos vizinhos ou se a autarquia fizer uma fiscalização. Por exemplo, se comprar um imóvel que está licenciado para 50 metros quadrados (m2) e que na verdade estão construídos 200 m2;
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Comprar uma casa que não cumpre as regras de construção e segurança;
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Comprar uma casa sem licença compromete a contratualização do crédito habitação, porque os bancos exigem a licença de utilização para avançar com o financiamento.
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Se não conseguirem empréstimo, correm ainda o risco de perder o sinal dado na assinatura do contrato de promessa de compra e venda (CPCV);
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Venda da casa no futuro sem licença será mais complexo e com potencial desvalorização.
Sobre a necessidade de apresentar licença na hora de pedir financiamento bancário para comprar casa, Miguel Cabrita, responsável pelo idealista/créditohabitação em Portugal, sublinha que a "licença de utilização garante que o imóvel se encontra em conformidade com os critérios legalmente definidos". E mais informa que "o alcance das alterações decorrente do Decreto-lei 10/2024 ainda está a ser analisado por todos os implicados, não havendo ainda qualquer indicação especifica ou tomada de posição oficial sobre o assunto".
Estas regras que entraram em vigor em janeiro de 2024 não são, contudo, uma completa novidade em Portugal. Nos anos 80 e 90, também não era necessário apresentar a licença de utilização na hora de vender a casa, mas o regime mudou “porque naquela época muitas pessoas acabaram por ser lesadas ao comprar casas sem a respetiva licença”, recorda o Bastonário da Ordem dos Notários. Agora, regressamos às regras antigas de simplificação de formalidades na compra e venda de imóveis (e os problemas também podem estar de volta).
Como é que as famílias se podem proteger na hora de comprar casa?
Desde logo, a dispensa de apresentação da licença de habitação “vai obrigar que os responsáveis pela realização da escritura pública informem muito bem o comprador dos riscos”, aponta Jorge Batista da Silva. Além disso, sublinha que “não ser exigível por lei de emissão da licença, não significa que o comprador tenha de dispensar que o vendedor a entregue. Aliás, o normal será o comprador continuar a exigir” para ficar protegido, recomenda.
Por isso mesmo, o importante é que as famílias que estejam a pensar comprar casa exijam toda a documentação sobre o imóvel, como licenciamentos e ficha técnica de habitação, mesmo antes de assinarem o contrato de promessa de compra e venda (CPCV), para não se vincularem sem terem absoluta certeza das condições de segurança e habitabilidade da casa que estão a adquirir.
Este é o apelo do Bastonário da Ordem dos Notários: “Tenham bastante cuidado na realização dos contratos [de promessa de compra e venda], porque neste momento a proteção e segurança que tinham – de só comprar imóveis licenciados ou que o Estado tinha dispensado o seu licenciamento por algum motivo - já não existe. E, portanto, devem-se informar junto do notário sobre quais são os riscos que estão a correr ou se o imóvel está em conformidade para avançarem com o negócio”, reforça.
"Não ser exigível por lei de emissão da licença, não significa que o comprador tenha de dispensar que o vendedor a entregue. Aliás, o normal será o comprador continuar a exigir"
Claro está que as famílias e os investidores devem ter atenção a diferentes aspetos se comprarem uma casa já construída ou em construção, explica ainda:
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Compra de casa em construção: “Aconselho sempre que a assinatura do CPCV ocorra com a prova da licença de construção”, para garantir que “o imóvel que se está a comprometer a comprar, está a ser construído com uma licença de construção válida”. Depois, antes de assinar o contrato definitivo na escritura, que há que assegurar que existe uma licença de utilização – até para receber a última tranche do crédito habitação, caso exista;
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Compra de casa construída: aqui basta solicitarem a licença de utilização (que pressupõe a licença de construção), que é o documento que os bancos vão solicitar para dar seguimento ao crédito habitação.
Por tudo isto, desde o seu ponto de vista, “é importante as pessoas serem acompanhadas numa fase mais precoce no notário e para terem um acompanhamento melhor daquilo que é o seu processo de decisão para a compra da casa e evitar perder dinheiro”, conclui Jorge Batista da Silva. Ter a licença de utilização da habitação é uma “informação essencial para tomar a decisão final de assinar um contrato de promessa”, pelo que os potenciais compradores de uma casa devem exigi-la sempre, insiste.
Do novo portal de dados à mudança de uso: quais as vantagens e desafios do simplex?
Além de deixar de exigir a licença de utilização na compra de venda de imóveis, o simplex do licenciamento também traz outras novidades no âmbito do urbanismo e ordenamento do território, tendo em vista ajudar a aumentar a oferta de casas disponíveis para venda ou arrendamento em Portugal. “Este pacote apresenta um conjunto de vantagens que são inegáveis para a celeridade processual e de uma série de outros mecanismos de diminuição de burocracia”, sublinha o Bastonário da Ordem dos Notários ao idealista/news. E também Miguel Cabrita refere que "as medidas que permitam a desburocratização de licenciamentos, desde que de modo controlado, são sempre bem-vindas, tendo um impacto consequente no crescimento na oferta de habitação".
Conversão de imóveis comerciais para habitação traz mais casas
Para aumentar o número de casas no mercado, o simplex vai ajudar, por exemplo, na questão da facilitação da reconversão de imóveis comerciais para efeitos de habitação, sem deliberação de condomínio. Esta é uma das medidas que deverá entrar em vigor a partir de 4 de março de 2024.
“Portanto, alguém que tem uma loja no rés do chão - que é algo bastante comum - e que a pretenda passar para a habitação, já não precisa de pedir autorização a todos os seus vizinhos do prédio e pode avançar imediatamente com o licenciamento junto da autarquia. E isto, principalmente em algumas grandes cidades, irá permitir que umas centenas de imóveis venham para o mercado, alguns que eram completamente inúteis, porque na maioria dos casos não estavam sequer a ser utilizados, eram alvos de vandalismo ou até de habitação ilegal”.
Além disso, o diploma prevê ainda a simplificação do processo de reclassificação de solo rústico em solo urbano, desde que tenha como finalidade a construção de habitação pública ou a custos controlados.
Nova plataforma vem uniformizar processos urbanísticos das autarquias
Outra novidade do simplex passa mesmo pela criação da Plataforma Eletrónica dos Procedimentos Urbanísticos, que vem “uniformizar procedimentos e documentos exigidos pelos municípios, evitando a multiplicação de práticas e procedimentos diferentes”. Além disso, permite apresentar pedidos online, consultar o estado dos processos e prazos, e ainda obter certidões de isenção de procedimentos urbanísticos.
O regime jurídico aplicável à Plataforma Eletrónica dos Procedimentos Urbanísticos entra em vigor a 5 de janeiro de 2026 e vai permitir uma “submissão de pedidos em formato Building Information Modelling (BIM), com automatização da verificação do cumprimento dos planos aplicáveis”, lê-se ainda no decreto-lei.
Esta nova plataforma é “fundamental” e vai trazer várias vantagens para o mercado imobiliário, segundo aponta Jorge Batista da Silva:
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“Vai permitir normalizar aquilo que é um procedimento urbanístico (…) e a forma como os cidadãos se relacionam com a administração pública seja igual e independentemente do concelho onde se vive”;
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Vai dar uma “noção estatística daquilo que são os prazos de respostas de cada um dos municípios”, que é importante na hora de tomar decisões como comprar casa ou realizar investimentos imobiliários. Até porque “o decurso do tempo no processo urbanístico é o maior dissuasor neste momento ao investimento” e acaba por ter “um enorme reflexo nos custos para o consumidor final”, alerta;
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Cria uma competição saudável entre os municípios para terem processos de decisão céleres de forma a captar mais investimento e novos residentes.
Autarquias pressionadas com mais responsabilidades
Outra alteração legislativa que também vem facilitar e agilizar os licenciamentos trata-se da maior responsabilização dos técnicos responsáveis pelos projetos e da simplificação do processo de emissão da própria autorização para utilização dos imóveis. Assim, “os projetos podem ser apresentados junto das autarquias municipais, as quais têm um prazo de 20 dias para se pronunciarem. E caso não se pronunciem, aquele imóvel passa a estar apto para a habitação. Esta medida vai, de alguma forma, pressionar as próprias autarquias municipais, porque as possibilidades da criação de novas ferramentas digitais irão permitir tornar mais transparentes os processos de licenciamento”, acredita o especialista.
Mas os próprios autarcas consideraram que a simplificação dos licenciamentos traz “o perigo” da responsabilização dos técnicos e das autarquias, quando muitas vezes os atrasos vêm de fora. Quando, por exemplo, estão a aguardar pareceres vinculativos de entidades externas, como o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) ou a Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
Sobre este ponto, o Bastonário da Ordem dos Notários afirma que “a administração pública tem de funcionar como um todo. Se há uma autarquia que não emite uma determinada licença por culpa de outra entidade pública, naturalmente que existe uma justa causa, um justo impedimento. Agora, tem de existir consequências para todos e as autarquias devem denunciar os atrasos publicamente assim que surgem, para que os procedimentos possam melhorar”, refere, sublinhando que a legislação é dinâmica e que os diplomas devem ser revisitados para que possam ser ajustados e melhorados ao longo do tempo.
Por: Idealista