Por: Padre Carlos Aquino | effata_37@hotmail.com
Entrou serena e silenciosa na descrição que profundamente a caracteriza. Envolvida num silêncio falante, que guarda memórias e tempos, terras e abismos, sonhos e fundamentos. Saudou com um olhar contemplativo. Um olhar atento, acolhedor, que esconde a grandeza e a beleza da sua pequenez e humildade. Um olhar que fala das suas raízes e do seu chão. Saudou com um sorriso límpido e singelo de menina. Falo de Lídia Jorge. A escritora natural de Boliqueime.
Autora de impactantes romances, contos, ensaios e crónicas. Também visitada pela luz intemerata da poesia. Filha de agricultores e emigrantes. Uma Senhora, que não necessita de reclamar “empoderamento” feminino para se dizer inteira, grande, fecunda. Como as palavras que profere meditativamente. Palavras que nascem da escuta, do silêncio, da contemplação, da hospitalidade da verdade.
As suas palavras acrescentam sempre. Transparentes, as suas palavras iluminam, removem-nos e desinstalam-nos dos preconceitos desonestos, do óbvio, do politicamente correto, das aparências hipócritas e vazias, do cinismo mascarado e sinuoso, da falsidade e da sonsice. Na suavidade da sua voz, na noite em que se fazia memória do 25 de abril de 1974, escutámo-la a falar da herança e do projeto de abril, uma revolução para a liberdade.
Mas sentimos também a força e a veemente firmeza da mesma quando falou do tanto que abril nos legou e que a memória não esquece, da perda da esperança e de utopias, da realidade de uma certa “retrotopia”, que parece ter assaltado e agora envolve, neste tempo, as nossas estruturas sociais, políticas e culturais, a edificação das nossas próprias vidas.
Um pensamento já aprofundado, partilhado e legado em obra póstuma por Zygmunt Bauman, e que exprime esse sentimento de uma ardilosa desconfiança perante o presente e as Instituições e o desejo de um regresso a um passado mitificado, que nunca existiu realmente, mas que julgamos conhecer, desejamos como verdadeiro e seja expressão nova da construção do nosso existir neste mundo, regressando quase que ao âmbito da caverna e da tribo como um modo de ver, de julgar, de pensar e de agir.
Escutámo-la, depois, na manhã comemorativa do esperado “dia inicial inteiro e limpo (…) onde livres habitamos a substância do tempo”, a aproximar a revolução desejada e acontecida ao suplemento de vitalidade e de energia da Poesia, campo onde se inaugura um mundo novo e libertando antinomias. Reaprendemos com ela, que uma revolução mesmo iniciando mudanças profundas e necessárias nunca cria heróis.
Todavia, é por ela, por essas mudanças esperadas e necessárias, saboreando os seus frutos, que precisamos com paciência e inteligência continuar a vencer os movimentos de anti democratização, saber dialogar com a extrema-direita que se agiganta, aprender a admirar o “outro”. Porque urge recriar e melhorar o âmbito social, promover um novo modelo económico.
A liberdade alcançada exige que no âmbito moral saibamos construir com a verdade e a justiça, vencendo a corrupção, sabendo que a lentidão é também uma forma de corrupção. A liberdade exige no âmbito cultural a que saibamos reagir perante a realidade dos imensos desafios que nos deixa o crescimento veloz da informatização, da digitalização e da inteligência artificial, nunca negando os princípios científicos e humanos e valorizá-los, sabendo que os fundamentos da nossa sociedade são cristãos. Na verdade, acredito, isso nos torna maiores, mais humanos e verdadeiramente mais livres. Uma Senhora memorável num dia memorável.