Lança Livro de Poesia «RASTILHO»
Miguel Duarte, natural de Loulé, 42 anos, é escritor, músico e tradutor. Residente em Lisboa, Miguel Duarte é reconhecido pela sua versatilidade artística, explorando diferentes formas de expressão criativa.
Como escritor, Miguel Duarte lançou o seu primeiro livro de poemas intitulado "Rastilho", marcando a sua estreia no cenário literário.
Além da sua contribuição para a literatura, Miguel Duarte também se destaca como músico, produzindo música eletrónica sob o pseudónimo de Holldën.
Com uma presença multifacetada nas artes, Miguel Duarte continua a cativar e inspirar o público com a sua criatividade e talento.
A Voz do Algarve - Como surgiu esta vontade de expressar “o que lhe vai na alma” em forma de poesia?
Miguel Duarte - Comecei a escrever poesia na adolescência. Sempre procurei a solidão, desde muito pequeno. É estranho. Falava sozinho, criava mundos em que mais ninguém entrava, não me sentia igual às outras crianças. Foi um choque, mais tarde, descobrir que nenhum sonho sobrevive inteiro à realidade. O sonho é só a viagem, sem o destino. Mas ser criança é isso mesmo, não é? E com a poesia estou sempre a sonhar, não há um fim à vista. É uma forma de não perder contacto com a inocência. Depois também é verdade que hoje as pessoas aborrecem-me. Quanto mais velho fico mais me custa ter que explicar-me ao outro. É muito limitada a comunicação que temos uns com os outros, não é? E um tanto ou quanto desonesta. Acabamos sempre mais perdidos à saída do que à entrada, é a sensação com que fico. Por isso, escrevo. Que mais hei-de fazer senão escrever?
V.A - Explique o nome da Obra. Porquê “Rastilho”?
M.D - É um título simples, direto, e tem uma certa tensão associada, como a minha escrita. Aliás, a palavra surge num dos poemas. Pareceu-me uma escolha natural.
V.A - Pode partilhar connosco a origem e a motivação por trás da criação deste livro de poesia? É o seu primeiro trabalho publicado neste gênero literário?
M.D - Há mais de 20 anos que tinha a ideia de publicar a minha poesia. Ainda bem que não o fiz na altura, porque os meus poemas eram comicamente maus. Este é o meu primeiro livro publicado, ponto. Não aconteceu antes porque não podia ter sido antes. A poesia não se inventa, colhe-se. Agora tinha o tempo e a maturidade do meu lado. Depois, tive a felicidade de encontrar na Alêtheia uma editora que acreditou em mim. E no Samuel Úria uma alma generosa que me presenteou um prefácio perigosamente bom. Ainda hoje não consigo lê-lo sem ficar corado. Fiquei desconcertado quando aceitou "abençoar" o livro.
V.A - Pode descrever o processo criativo por trás da sua inspiração para escrever poesia? Quais são as suas fontes de inspiração e como se manifestam na sua obra?
M.D - Desde logo, não escrever é tão importante como escrever. Andar por aí de mãos nos bolsos. Observar. Espreitar pela janela. Às vezes somos como alguém que espera num apeadeiro por um comboio cheio de palavras. Passa todos os dias, não sabemos é a que horas. Um poema deve começar pela coisa mais simples do mundo, com humildade. Depois vai-se por ali fora. Algo que só aprendi com a idade foi a ter consistência temática. Detesto poetas que escrevem de joelhos perante a língua. Acabam sempre a perseguir a própria cauda, perdidos, perdidos... Isso não é fazer poesia, é ser arqueólogo. Poesia é desatar o novelo. Temos que seduzir a língua e trazê-la até nós, não o contrário. A palavra não é um fim em si, tem de ser veículo.
V.A - A poesia frequentemente serve como uma forma de expressão pessoal e reflexão sobre a condição humana. Como é que utiliza a poesia para explorar questões de identidade, emoções complexas e experiências de vida?
M.D - Não penso nessas coisas quando estou a escrever. A mim interessa-me chegar à verdade, qualquer que ela seja. E a verdade pode nem sequer ser a verdade como as pessoas a vêem. Pode ser cor, temperatura, movimento. Não pego na caneta e digo "ok, agora aqui vai um poema glorioso sobre a condição humana." Não está ao meu alcance. Muitas vezes escrevo sobre coisas que não têm nada a ver com a minha experiência de vida. Mas, no fundo, estou também a falar sobre mim. Ao falarmos de nós próprios, não estamos a falar de todas as coisas vivas?
V.A - No contexto da crescente influência das redes sociais e da internet na disseminação da arte, como é que perceciona o papel das plataformas digitais na promoção da poesia e na construção de comunidades literárias?
M.D - Têm sobre estas a mesma acção estupidificante que têm sobre qualquer outra forma de arte. A força bruta dos números diz-nos que nunca se leu tanta poesia no mundo. Mas também nunca houve tanta má poesia a céu aberto. A crescente irrelevância dos editores é toda uma tragédia em si. No seu lugar impôs-se esta cultura indulgente que promete às pessoas o direito universal à fama, o mérito ao alcance de um clique. Essa é a mensagem pouco subtil das redes sociais. Num instante, pumba, qualquer um se julga doutor de letras e o mundo tem de lidar com uma poia a mais. Tudo se confunde, ninguém distingue o “cu das calças”, isto desvaloriza a arte. É a literatura transformada em cartão de visita, em currículo. Um circo! E na música é pior ainda, com o streaming. Na literatura, do mal o menos, sempre perdura um certo apego romântico ao livro físico, o que ainda dá alguma margem a autores e editoras. Há quem chame a isto a democratização da cultura. Eu chamo-lhe caos ao serviço de agiotas. Hoje em dia, o tipo que queira nadar num ambiente destes tem de ter autênticas qualidades de idiota, como eu.
V.A - A linguagem é uma ferramenta poderosa na poesia, capaz de evocar imagens vívidas, transmitir emoções intensas e desafiar convenções gramaticais. Como é que escolhe e manipula as palavras para criar impacto no leitor?
M.D - Não há uma resposta para essa pergunta. Não há mesmo. Que forma tem a água? Ninguém sabe. As imagens vêm na minha direcção e eu apanho-as ou não, dou-lhes este ou aquele jeito. É todo um hino à ineficiência. Por isso as universidades produzem médicos, engenheiros, advogados, mas nunca produziram um único poeta até hoje. Um tipo, quando vai estudar, ou já é poeta ou nunca será poeta. Agora, o que eu posso dizer é que não reviro o baú à procura da palavra mais obscura do mundo. Uso o que tenho de usar para que as imagens ganhem vida. Mal daquele que escreva para impressionar linguistas.
V.A - A relação entre poesia e política tem sido explorada ao longo da história, desde a poesia de resistência até à poesia que celebra a beleza e a diversidade do mundo. Como é que vê o papel da poesia na abordagem de questões sociais e políticas atuais?
M.D - Não tenho o mais pequeno interesse em enterrar a poesia nas aflições do mundo. A luta não se resolve fechando-a numa arena de palavras. Mas é preciso começar por pensar fora dessas questões — aliás, muitas delas derivadas de um certo desenraizamento cultural e espiritual que redunda em comichões insulares que o tempo não valida —, é preciso, dizia eu, voltar aos temas universais e imutáveis. A poesia é ar puro. O mundo é que se tornou irrespirável. A política já contamina tudo. É uma doença. Para quê encher também a poesia de política? Posso falar do rosto tisnado de um mineiro. Não é espantoso haver um homem encardido nas entranhas do mundo? Posso até fazer disso um poema de amor. Mas não posso transformá-lo numa ode ao trabalhador, porque aí começa a mentira e eu tenho asco à mentira. Depois, os pruridos que atormentam hoje as elites e a criançada... Não se arrancaria daí a poesia de um peido sequer, nem à martelada.
V.A - A intertextualidade é uma técnica comum na poesia, onde os poetas dialogam com obras literárias anteriores. Que obras literárias clássicas ou contemporâneas influenciam o seu trabalho e de que forma?
M.D - Sei que é estranho dizer isto, mas leio cada vez menos poesia hoje em dia. Nada nasce no vácuo, por isso há influências, inevitavelmente. Mas essas influências derivam mais das impressões e cores que certos autores deixaram em mim do que propriamente de momentos concretos.
V.A - A performance poética tem ganho destaque como uma forma de dar vida aos poemas através da voz e da expressão corporal. Como é que vê a relação entre a escrita poética e a performance, e qual é a importância da voz do poeta na interpretação dos seus próprios textos?
M.D - Não é uma coisa que eu siga. Não faz o meu estilo. Prefiro ler. Para dentro. Acho que a literatura tem essa particularidade. Exige solidão e recato. Há sempre algo de pessoal que se perde numa leitura pública.
V.A - O conceito de “beleza” na poesia é muitas vezes subjetivo e multifacetado. Como é que define a “beleza” na sua própria poesia e como é que procura transmiti-la aos seus leitores?
M.D - É difícil explicar isso. Tenho vivido sempre em nome da beleza. Mas a beleza também somos nós que a fazemos. Não é necessariamente algo de evidente que cresça nas árvores. O movimento que nos impele a procurar a beleza, esse sim é a lição dos anos.
V.A - A poesia é frequentemente descrita como uma forma de arte que transcende as fronteiras linguísticas e culturais. Como é que encara o desafio da tradução poética e a sua capacidade de preservar o significado e a essência dos poemas em diferentes idiomas?
M.D - Nesse domínio, a música é muito mais maleável como linguagem universal do que a palavra. A escrita, sobretudo a poesia, remete muitas vezes para aspectos que têm a ver com uma ideia de país e identidade cultural. O inglês, por exemplo, forjou-se na globalização. É uma língua acessível, mas mais pobre. É mais fácil traduzir do inglês para o português do que o contrário. Mas o português é mais rico por isso mesmo. Tem gente dentro, ainda.
V.A - Não é muito comum ver jovens dedicados à poesia. Como espera influenciar a sua geração?
M.D - Desde logo, não sou assim tão jovem. Passo por jovem, por uma unha negra, porque se calhar ainda não tenho cara de culpado. Depois, não presumo ter a capacidade de influenciar quem quer que seja. Se as pessoas gostarem do que escrevo, tanto melhor. Mas não é uma preocupação que eu tenha.
Por: Nathalie Dias