MED XX A DANÇAR É QUE A GENTE SE ENTENDE

09:31 - 30/06/2024 LOULÉ
A indicação em frente a cada nome no cartaz proposto para a segunda jornada do Festival MED indicava que se viajaria, musicalmente falando, entre as ilhas de Cabo Verde dos Acácia Maior e a França dos Ko Shin Moon, com paragens bem animadas em Espanha, Cuba, Finlândia, Argélia, Angola, e, pois claro, Portugal. África e Europa e América num mesmo lugar.

Mas há outras paragens nesta edição de redondo aniversário do evento que toma conta do pitoresco centro histórico de Loulé: desde logo Marrocos, o primeiro país formalmente convidado deste festival, sendo possível, entre exposições ou momentos de lazer no souk montado no recinto, contactar de muito perto com a rica cultura desse reino que tanto histórica como geograficamente nos é tão próximo.

Uma vez mais, o simples acto de deambular pelas ruas deste núcleo histórico de Loulé é garantia de surpresas e experiências múltiplas. Além dos palcos onde acontecem os espectáculos, as ruas também oferecem cultura, e não apenas nos espectáculos itinerantes que nos vão surpreendendo ao dobrar de cada esquina, mas no amplo mercado que serpenteia por ali numa sucessão de multi-coloridas bancas onde se podem descobrir pequenos-grandes tesouros. Como uma edição original do clássico LP Os Afro Sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes a que facilmente se adicionam umas pérolas de José Mário Branco, Sérgio Godinho e Ney Matogrosso se para isso houver vontade – e carteira, obviamente.

Depois de um retemperador jantar, a viagem começa no pequeno anfiteatro relvado que se estende diante do palco Chafariz com uma actuação de Acácia Maior, projecto conduzido por Henrique Silva e Luís Firmino que em palco conta ainda com importantes prestações de João Gomes (também parte de Fogo Fogo, entre outras aventuras) ou da vocalista Débora Paris. Foi um arranque dolente, mas participado, que convidou a dança na plateia e até envolveu algumas arrojadas coreografias orientadas a partir do palco. Luís Firmino fez questão de dizer que foi no Algarve, em tempos de estudo, que a aventura Acácia Maior arrancou, facto que motivou aplausos de amigos presentes, mas a verdade é que no som que praticam, as marcas da tradição não escondem uma mundivisão que vai para lá das ilhas de onde são naturais e facilmente cruza oceanos, abraçando uma vibração maior.

Pelo palco do Chafariz passou ainda o colectivo de “nações unidas” Al-Qasar, que energicamente funde a musicalidade de instrumentistas vindos de França, Arménia, Turquia e Estados Unidos, algo que inspirou efusivas reacções do público, e ainda os “aniversariantes” Kumpania Algazarra que por estes dias celebram tantos anos de animada carreira quantos os que o próprio MED assinala, confirmando no palco que já bem merecem o estatuto de “incansável agremiação multicultural” que os transformou em presença obrigatória em inúmeros festivais, dentro e fora do país.

Uma das artistas que maiores expectativas gerava no segundo dia do MED era a marroquina Oum que abriu os espectáculos no palco Cerca perante uma plateia confortavelmente sentada com a sua vibrante e original fusão de sons tradicionais e urbanos do Norte de África com jazz, soul e até pontuais colorações latinas – a sua versão de “Lágrimas Negras” é uma delícia a que dificilmente se resiste, por exemplo. Com vincada personalidade rítmica para que a própria Oum contribui com as características karkabas e arranjos que fundem o oud e a evocativa voz de Yacir Rami com o lado mais jazzy de um contrabaixo e de uma dupla de metais, esta é também uma música aberta ao mundo em que a exuberância vocal de Oum Dakchi captura as principais atenções.

Pode dizer-se que a energia libertada pelo programa do Palco Cerca foi na noite de ontem crescendo a cada actuação: do apaixonante “lume brando” de Oum não demorou muito até à incandescente actuação do colectivo catalão Hip Horns, um dinâmico ensemble que pega no tradicional formato das “marching bands” de Nova Orleães, ousando uma aproximação ao hip hop com as tradicionais ferramentas do jazz: a bateria e a tuba, pelas suas dimensões, podem até estar estaticamente posicionadas em palco para melhor garantirem a fundação rítmica, mas tudo o resto se move em coreografa e dinâmica movimentação pelo palco – trombones e saxofone e trompetes enredam-se em harmónicas trocas de mimos, sempre com pronunciada cadência a que o público naturalmente responde. E a esse delicioso bolo musical corresponderam ainda um par de rappers, cerejas no topo de uma actuaçao irrepreensível.

E, obviamente, o ponto de fusão atómica ocorreu quando os imparáveis Throes + The Shine de Mob Dedaldino, Igor Domingues e Marco Castro subiram ao palco: este trio tem a força de uma locomotiva desgovernada e a precisão rímica de um metrónomo cheio de ginga, mostrando uma evoluída declinação do kuduro tornada ainda mais musculada com uma postura assumidamente rock. O resultado musical dessa fórmula é depois temperado com o carisma sem limites do homem do microfone que tem uma incomparável capacidade de fazer o público tornar-se parte do espectáculo.

A noite de sexta-feira trouxe muito mais: a alma gigante de vozes como as de Delfina Cheb (no palco Hamman) e Teresinha Landeiro (no palco Castelo) ou a intensidade nórdica de Antti Paalanen que envolveu o público num autêntico tornado rítmico. Diferentes propostas para múltiplos palatos auditivos, mas todas de reconhecida qualidade.

No palco Matriz junta-se sempre a maior das multidões, facto que nesta segunda noite de MED se compreendia uma vez que a elegância tropical do pianista cubano Roberto Fonseca, o carisma de um dos maiores embaixadores da riqueza musical de Cabo Verde, Tito Paris, e a fusão modernista de música dançante e tonalidades melódicas subtraídas às variadas tradições musicais mediterrânicas oferecem o tipo de variedade a que os públicos mais amplos respondem com agrado. Dançar é um acto de liberdade e não importa realmente de onde chegam os estímulos, é a síncrona união que a música inspira que mais importa. E disso não houve falta na segunda jornada do MED. Hoje haverá mais!

“Diário de Bordo, 20 anos Festival MED”, por Rui Miguel Abreu, crítico e radialista