Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor
A infância tem destas coisas, mistura fragilidade com encantamento e deixa-nos memórias que não se apagam. Eu cresci entre crises de asma quase diárias, daquelas que nos tiram o ar e nos devolvem um mundo feito de ansiedade. O ritual dos aerossóis era constante. Havia sempre um frasco a chiar, uma máscara que eu ajustava ao rosto e aquele vapor frio que parecia afastar a falta de ar apenas o suficiente para atravessar mais um dia.
Os anos 80 não ajudavam. Era a década das carpetes, símbolo de modernidade doméstica, espalhadas por corredores, quartos e salas. Para quem tinha asma era um tormento. A poeira aninhada nas fibras levantava-se ao mínimo passo e bastava um movimento para provocar em mim uma corrida contra o tempo. Houve dias em que quase sabia de cor a sensação que vinha antes da crise, como se o corpo anunciasse o colapso iminente.
No meio desta rotina, existia um momento quase cinematográfico que atravessou a minha memória como um flash. Quando me levavam ao hospital, as mães inclinavam-se discretamente para os filhos e diziam olha o Carlos Paião. A minha fazia o mesmo e eu seguia o olhar com a expectativa de quem procura no quotidiano uma personagem que conhece da televisão.
Ao fundo do corredor surgia a figura familiar. A barba bem marcada, a bata branca que lhe dava uma solenidade tranquila, e aquele sorriso que parecia conter duas vidas. A vida do artista que animava o país e a vida do médico que caminhava com a concentração de quem sabe que tem responsabilidades maiores do que qualquer aplauso. Ele não era ali o cantor das melodias que aprendíamos sem esforço. Era um profissional sereno, atento, que fazia o que tinha a fazer com uma dedicação que só os grandes conseguem manter.
Mais tarde descobri que essa dualidade definia realmente o seu percurso. Carlos Paião compôs centenas de canções que ficaram gravadas no imaginário português e ganhou o Festival da Canção. Ao mesmo tempo, formou-se em Medicina na Universidade de Lisboa e cumpriu o internato com o rigor que o caracterizava. Colegas recordam que escrevia músicas em papéis soltos nos intervalos e que conseguia trocar o ritmo dos palcos pela disciplina dos hospitais sem perder a alma num lado nem no outro.
A minha asma acabou por desaparecer com o tempo, tal como desaparecem certas angústias da infância. Mas continua viva a lembrança daquele corredor onde a realidade se cruzava com o imaginário. Naquele instante eu via um homem que conseguia ser duas coisas ao mesmo tempo, médico e músico, talento e serviço, palco e silêncio. E talvez tenha sido isso que me marcou mais do que as crises ou os tratamentos. A constatação de que a vida pode ser maior quando não se limita a um único caminho.
Ainda hoje, quando penso nesses dias, lembro-me da poeira das carpetes, do vapor dos aerossóis e do sorriso calmo de quem caminhava com a serenidade de quem sabe para onde vai. E nesse quadro fica a memória de um país que respirava com ele e que ainda respira cada vez que se ouve uma das suas canções.