A noite de Ópera no S. Carlos em que Natália Correia fez tremer o Estado Novo

20:00 - 20/11/2025 OPINIÃO
Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor

Em fevereiro de 1959, o Teatro Nacional de São Carlos viveu um episódio que revelou a tensão entre criação artística e controlo político durante o Estado Novo. A récita da ópera Wozzeck, de Alban Berg, estava preparada para receber as mais altas figuras do regime, como tantas vezes acontecia. Contudo, a morte de Gago Coutinho, figura maior da aviação portuguesa, alterou o protocolo previsto e levou a que o Presidente da República faltasse à representação nessa noite. O que poderia ter sido apenas uma ausência de circunstância acabou por expor um caso cultural de grande significado político.

No interior do teatro circulava um pequeno livro vendido a 7$50. Era o libreto de Wozzeck traduzido para português por Natália Correia e Rosário Corte-Real, com prefácio de Manuel de Lima e edição da Contraponto. A singularidade deste facto não estava apenas na audácia editorial, mas também no risco que representava para um regime obcecado com a vigilância ideológica. A obra original, baseada no drama de Georg Büchner, é profundamente crítica da miséria social, da violência estrutural e da degradação humana. O prefácio acentuava esta visão, apresentando Berg e Büchner como dois espíritos revolucionários unidos na intenção de denunciar e abalar a sociedade da sua época.

Para reforçar a importância do acontecimento, um orador subiu ao palco antes da representação, anunciando ao público que testemunharia algo extraordinário na história de São Carlos. Nesse mesmo momento, e pela primeira vez, não se vendia apenas o programa oficial, mas também o texto integral da ópera vertido para português. O gesto assumia grande ousadia num tempo em que a circulação de palavras era severamente controlada.

A aparente normalidade do evento não durou muito. No segundo intervalo, um responsável do teatro foi confrontado com o conteúdo do livrinho e reagiu com surpresa. Momentos depois chegou a ordem de proibição, atribuída a um funcionário do Secretariado Nacional da Informação. O livreto desapareceu imediatamente das bancas do teatro e a sua circulação cessou quase antes de começar. O gesto revelou um lapso dos mecanismos de controlo cultural e expôs a vulnerabilidade do regime sempre que a criação artística ultrapassava os limites tolerados.

As reações na imprensa amplificaram a polémica. No jornal O Século, a crítica assinada pelo mesmo orador que apresentara a ópera alinhava com o tom do prefácio e descrevia determinados momentos da obra como golpes que atingiam o público de forma violenta. No Diário da Manhã lamentava-se que a ópera não tivesse sido cantada em português, para que a mensagem pudesse ser compreendida com maior clareza. A Rádio e Televisão Portuguesa dedicou ao espetáculo uma atenção invulgar, o que agravou o desconforto entre as figuras mais conservadoras do regime. Era difícil ignorar o alcance simbólico de um Estado que, inadvertidamente, financiava e divulgava uma obra com forte carga crítica.

O caso Wozzeck tornou-se assim um episódio paradigmático da política cultural do Estado Novo. O regime ambicionava projetar uma imagem de modernidade e sofisticação artística, mas recuava sempre que a liberdade criativa ameaçava a narrativa oficial. A noite de São Carlos mostrou que a cultura podia escapar ao controlo e expôs a tensão entre a aparência de abertura e a rigidez censória.

No final, ficou a impressão de que, naquele fevereiro de 1959, a música afinou num tom que contrariava aquilo que o regime desejava ouvir. A estreia de Wozzeck tornou-se um momento discretamente subversivo, em que a arte encontrou um raro espaço para desafinar do compasso oficial e deixar um eco que a censura nunca conseguiu silenciar por completo.