Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor
Na fotografia, António de Spínola surge a inaugurar uma escola na Guiné com a teatralidade calculada que sempre o acompanhou. O uniforme polido, o monóculo perfeitamente ajustado e a postura estudada serviam menos para assinalar uma obra e mais para transmitir à metrópole a imagem de um governador esclarecido, disciplinado e modernizador. Na prática, a escola era um cenário útil para reforçar a narrativa oficial, não um símbolo de mudança estrutural no território.
A distância entre a pose e a realidade era gritante. As populações continuavam deslocadas, o PAIGC expandia posições e o exército português enfrentava uma guerra difícil, sem meios suficientes e com operações que raramente cumpriam as expectativas. A retirada trágica do Ché Ché, que deixou dezenas de militares mortos ao atravessar o rio Corubal, evidenciou erros graves de comando. A Operação Mar Verde, anunciada como uma demonstração de audácia estratégica, falhou em alcançar os resultados que Spínola prometera. E no terreno, entre matas e destacamentos isolados, a moral oscilava enquanto a propaganda tentava impor uma narrativa heroica.
Nessa fase, Spínola já jogava em dois tabuleiros. De um lado procurava agradar a oficiais como Otelo e outros quadros militares emergentes, mostrando-se compreensivo, próximo, atento às suas críticas e às necessidades operacionais. De outro lado, construía para Lisboa a imagem do fiel servidor do regime, obediente, disciplinado e plenamente alinhado com a visão imperial da ditadura. Era o duplo jogo político de quem percebia que o conflito colonial poderia ser a porta de entrada para ambições muito maiores.
Entre os próprios militares, a confiança no general começava a vacilar. Relatórios discretos eram enviados para Lisboa dando conta das “tretas”, como lhes chamavam, publicadas nos jornais para enaltecer Spínola e os seus protegidos. A contestação era especialmente forte entre os artilheiros, sempre rigorosos e tecnicamente exigentes. Criticavam a fragilidade da estratégia de defesa de Bissau, que consideravam mal pensada e perigosamente otimista. A sua visão prática contrastava com a retórica grandiosa que o general fazia circular na imprensa.
A verdadeira fissura entre o mito e a realidade revela-se na reação de Spínola ao saber do assassinato de Amílcar Cabral. Não houve indignação pública nem firmeza militar. Apenas um murmúrio seco, quase resignado: “Bem, estamos tramados.” Era a confissão íntima de um comandante que sabia que a guerra escapava ao controlo, mesmo enquanto continuava a posar para cerimónias e inaugurações cuidadosamente registadas.
A vaidade, mais do que um traço pessoal, era instrumento político. Alimentava o regime, servia a propaganda e consolidava a figura de Spínola como peça indispensável num império que se desmoronava. Mas também alimentava as suas próprias ambições, cuidadosamente cultivadas entre fotografias, discursos e operações falhadas.
É essa duplicidade que a história regista: o general da pose impecável e do gesto calculado, estratega de palco, figura de brilho fácil e substância frágil, sempre atento ao jogo político que se desenrolava por detrás das câmaras.
Ao contrário de Eanes, aceitou o título de Marechal.