S. Vicente ou Santo António? Afinal, quem é o verdadeiro padroeiro de Lisboa?

20:00 - 22/11/2025 OPINIÃO
Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor

Por vezes, a memória das cidades é tão curiosa quanto teimosa. Lisboa, tão antiga quanto as suas colinas, traz no coração dois santos que disputam, há séculos, o afeto dos lisboetas: S. Vicente, o padroeiro oficial, e Santo António, o padroeiro do povo. A pergunta surge com frequência — quem é, afinal, o padroeiro de Lisboa? E por que razão, se a resposta oficial aponta para S. Vicente, é Santo António quem enche ruas, altares e tradições?

A história começa muito antes de alfacinhas, sardinhas assadas ou arraiais. S. Vicente, diácono hispânico martirizado no século IV, tornou-se figura venerada ainda na Idade Média. Segundo a tradição, dois corvos acompanharam as relíquias do santo até Lisboa, guardando a barca que as transportava. A cidade, impressionada pelo prodígio, adotou-o como seu protetor, e ainda hoje os corvos permanecem no brasão lisboeta como testemunho dessa devoção antiga. Durante séculos, S. Vicente foi mais do que patrono: era símbolo identitário e presença política nas cerimónias oficiais do reino.

Mas a devoção popular tem caminhos próprios. Séculos depois, nasce em Lisboa alguém que mudaria completamente o mapa afetivo da cidade. Fernando de Bulhões, o lisboeta que o mundo viria a conhecer como Santo António, partiu jovem para Coimbra e depois para Itália, onde se destacou pela pregação e pela inteligência fulgurante. Morreu em Pádua, mas nunca deixou de ser “o Santo António de Lisboa”, como insistiam os portugueses que nunca aceitaram perdê-lo para outra cidade. O povo apropriou-se dele com uma paixão que nenhum decreto régio conseguiu igualar.

Com o tempo, S. Vicente permaneceu nos brasões e nas solenidades, mas Santo António entrou nas casas. Tornou-se o santo a quem se pede trabalho, casamento, proteção, saúde, paz familiar. Foi o santo dos pobres, das mulheres que esperavam milagres discretos, dos marinheiros que levavam a sua imagem no bolso, das mães que educavam os filhos ao som das suas histórias. Lisboa encontrou no seu António uma afinidade profundamente humana, íntima, quase doméstica.

A popularidade cresceu tanto que, apesar de não ser o padroeiro oficial, Santo António passou a ser o padroeiro emocional da cidade. As festas de junho confirmaram a vitória dessa devoção: arraiais, manjericos, marchas, promessas, procissões e casamentos misturam-se numa celebração que nem sempre recorda S. Vicente, mas vibra intensamente com Santo António. A cidade que o viu nascer devolve-lhe, todos os anos, a mesma ternura.

E assim, Lisboa acabou por ter dois santos, cada um com um papel próprio. S. Vicente, guardião das suas origens medievais, patrono oficial e silencioso, velando a cidade desde o seu brasão. Santo António, o santo do povo, o que caminha pelas ruas com as pessoas, que entra pelas janelas das noites de verão e se instala na devoção diária dos lisboetas.

Quem é, então, o verdadeiro padroeiro de Lisboa? Oficialmente, é S. Vicente. No coração da cidade, é Santo António. E talvez a verdadeira magia esteja exatamente aí: Lisboa escolheu não escolher.