Por F. Inez

Entrou na farmácia uma rapariga dos seus vinte e poucos anos, com uma criancinha de cinco ou seis meses ao colo, embrulhada com uma mantinha … estávamos em pleno inverno … com o aspeto de estar a arder em febre, a tossir consecutivamente, uma tosse rouca, a fervilhar de secreções, que naturalmente naquela idade não sabia expetorar e que lhe dificultava visivelmente a respiração. Aquela mãe exibiu então uma receita de papel timbrado do velho Hospital da Misericórdia de Loulé.

Pelo diálogo estabelecido com o farmacêutico apercebi-me de que a receita prescrevia três medicamentos … um antibiótico para combater a infeção, um antipirético para baixar a febre e um xarope expetorante para expulsar as secreções e aliviar a tosse.

Para minha grande surpresa, aquela pobre mãe quis previamente saber quanto lhe custaria cada um daqueles medicamentos … e depois de algum silêncio e hesitação … decidiu optar apenas e só pelo mais barato … pelo xarope para a tosse … naturalmente por não dispor da capacidade económica para adquirir os outros dois medicamentos. Porque se estava na presença de uma situação aparentemente grave de pneumonia ou até de bronquiolite …e aquela criança não iria sobreviver se medicada apenas com um xarope para tosse … senti que não poderia ficar indiferente e deveria fazer alguma coisa … pisquei o olho ao farmacêutico … que já tinha começado a argumentar que aquele menino estava muito doente … e para espanto daquela mãe sofredora … decidi intrometer-me na conversa e dizer que afinal a farmácia lhe iria oferecer os medicamentos!

Depois da inesperada surpresa, de muita hesitação e relutância, aquela pobre mãe … não muito convencida daquele desfecho … acabou por aceitar, afirmando que mais tarde viria pagar os medicamentos, não obstante lhe ter sido reafirmado que a farmácia lhos oferecia! Depois de mãe e filho terem saído, entendi que naturalmente deveria justificar a minha intervenção e dizer ao farmacêutico que iria custear do meu bolso aquela importância …já que aquela criança não iria sobreviver se medicada apenas com o xarope! Devo acrescentar que o farmacêutico recusou o meu pagamento e assumiu ele próprio o custo daqueles medicamentos.

Não gostaria de terminar esta comovente estória sem referir que, anos mais tarde, em conversa com aquele farmacêutico, ele me contou que, dois ou três meses depois, aquela mãe voltou à farmácia para dizer que o seu filho melhorou rapidamente com aquele tratamento… e que queria pagar a dívida … mas o farmacêutico, de novo, voltou a recusar receber! É a chamada estória com um final feliz! Ora bem … tudo isto se passou nos já longínquos anos 60 do século passado … já lá vão outros 60 anos … numa altura em que não havia ainda Serviço Nacional de Saúde (SNS)… criado apenas em 1979.

Antes disso a assistência médica competia às famílias, às instituições privadas e aos serviços médico-sociais das caixas de previdência … de má memória! Só mais tarde começaram a surgir os primeiros Centros de Saúde, em 1971 … e depois, finalmente o SNS, hoje com cobertura universal. Infelizmente o resto desta crónica, contrariamente àquilo que eu bem gostaria e ao contrário também daquela estória que acabei de contar, não está a ter neste momento, uma evolução feliz.

É hoje uma gravíssima preocupação estarmos a assistir, todos os dias, ao desmoronamento progressivo do SNS, sem que os sucessivos governos corrijam as causas … bem conhecidas … daquele desmoronamento e do abandono progressivo dos seus profissionais mais qualificados. E … não menos grave… e provavelmente do desconhecimento da maioria dos leitores desta crónica, não obstante o SNS comparticipar percentualmente no custo dos medicamentos … diversos inquéritos nacionais vêm revelando que 1 em cada 10 doentes … 10% da população portuguesa … não tem condições económicas para adquirir na farmácia os medicamentos que lhe são receitados nas consultas do SNS! É uma situação gravíssima e que se presume que se vá agravar ainda mais no clima progressivamente inflacionista que todos estamos a viver que afeta gravemente toda a população, mas sobretudo as classes mais desfavorecidas … com a agravante de estarmos à beira de uma subida acentuada do preço dos medicamentos, sob pena de desaparecerem do mercado farmacêutico em Portugal! Como era de prever, todas estas situações se agravaram significativamente com a recente pandemia de Covid-19 e com a crise mundial que decorre da catástrofe da guerra na Ucrânia. Não obstante esta panorâmica extremamente preocupante, não podemos perder a esperança de um mundo e um futuro mais pacífico e mais humano.