CRÓNICA DA CHUVA

12:14 - 19/02/2016 OPINIÃO
por Miguel Duarte | Escritor, DJ e Tradutor | jmduarte.md@gmail.com

Lentamente, o vasto horizonte da manhã fecha-se e debruça toda a sua atenção sobre a chuva singular que se abate sobre as telhas ali amontoadas. Chove e, subitamente, velhas mágoas regressam, juntam-se em redor disto, crepitando provérbios e recordando façanhas.

Não tem chovido muito este ano. Foi decidido, num qualquer instituto transatlântico, que o inverno está diferente do que era. Talvez por isso tenha ido a Sagres há uns dias. Queria ter certezas, bem lá na pontinha. Não houve nada.

Há-de perguntar-se aos poderes instituídos como pretendem reerguer a Nação se uma pessoa vai a Sagres e é acolhida, não com a bátega caravelar dum deus severo, mas com o aceno cordato duma brisa diplomada na escola de hotelaria? Eu cá não sei…

Parece-me é que a precipitação caiu – agora sim – em desuso. O grande céu tumular, inapelável, total, foi definitivamente emoldurado e guardado numa gaveta que range. O que está a dar é o azul digital do verão! O imenso clarão solar. A cor artificial, maior que a realidade. E, claro, grandes extensões de cultura sunset a romper pelas fileiras sisudas de Dezembro, Janeiro…

Um pouco por isso também, gosto agora mais da minha casa quando chove. Não qualquer trombada cataclísmica – que eu escolho o vinho e como devagar –, mas aquela suave cortina de água, sorrateira, cautelosa, abotoada em torno da nossa humanidade. Porque quando chove os nossos sentidos amplificam-se. Aquelas partes de nós, antes só trabalho, só amor, só nostalgia, só ambição e fuga, retornam em cortejo nobre, como velhas mágoas, e aí tem início o grande mistério da vida. Algo, não para nós, mas de nós, lança-se sobre o rasto histórico dos antepassados. E contribui o seu dízimo para a grande dança cósmica. É assim que se garante a sustentabilidade das finanças públicas, quer acreditem, quer não.