Festa Brava, Sim

08:45 - 23/07/2016 OPINIƃO
por Miguel Duarte | Escritor, DJ e Tradutor | jmduarte.md@gmail.com

Não digo que fui ensinado. Mas permitiram-me gostar de tourada desde pequeno.

Para mim, entre o cerimonial rígido que pauta a festa e a bravata encenada de cavaleiros e matadores, a tourada incorporou-se naquilo que me resta de uma certa inocência infantil, embalada em serões da RTP quando, retirando-me das agitações do dia, os capotes vinham refrescar-me o corpo como a brisa lunar de Agosto.

É talvez sintomático do tempo atual que a morte de um toureiro seja quase tão saudada nas redes sociais como um golo do Éder. Não reproduzir esses comentários é um favor que faço à higiene do leitor. Importa, sim, compreender porque se acha aceitável um comportamento que nada tem que ver com o amor por animais.

Digamos que a tourada, pelas suas componente e visibilidade, é um alvo fácil. Tornado fácil pela retórica panfletária de partidos como o BE ou o PAN e inflamado por uma geração emocionalmente amputada, para quem a apoteose do ser é cuspir bolas de pus refogadas em histeria.

Não é por ela que milhares de animais vivem e morrem em condições atrozes, em nome do apetite gourmet das nossas cidades. Nem é por ela que o défice desagrada a Bruxelas. Se queremos fugir à hipocrisia, exige-se ao menos que se conheça aquilo que se critica.

Há uma dimensão poética na arena que, por si só, chega para seduzir a alma na era das bimbis. Porém, para quem isso não basta, pensar que todos os dias tomamos a decisão consciente de ignorar a crueldade massiva que o abate comercial inflige no reino animal, deverá bastar para rebaixar a nossa altivez moral ao nível estomacal.

Guardo aqueles comentários nas redes sociais para me lembrar do estado abjecto a que as pessoas descem. Guardo-os para me lembrar sempre que a estas pessoas, que proclamam, entre arrotos de sadismo, fraternidades zoológicas, jamais confiaria um milímetro de mim ou do meu cão.

O que é a festa brava? A festa brava é a quintessência do sentir provinciano e o sublimar da truculenta dança entre Homem e mundo selvagem. É a expressão do engenho humano que prospera em virtude – e não apesar – das forças insondáveis, numa Ibéria que, despida de teatros, glamour ou estrelas Michelin, abastece contudo de comida e bucolismo as elites de Lisboa e Madrid, que lhes retribuem em igual medida com paternalismo e censura.

A festa brava é a apropriação da arte nobre pelo campino, naquilo que tem de mais humano na sua relação com o agreste rural. É perigosa e solidária. Dura e genuína. E nessa colisão de mundos cabe a admiração de gente como eu próprio.