União Europeia e Turquia: damas ou xadrez?

16:54 - 21/08/2017 OPINIÃO
por Diogo Duarte | Jurista, Licenciado em Direito e Mestrando em Direito Internacional | diogoduarte@campus.ul.pt

Se é verdade que o tabuleiro do jogo das damas e do xadrez partilham das mesmas características e se pintam das mesmas cores, não menos verdade é, que são jogos completamente diferentes, quer na sua dinâmica, quer na sua complexidade.

No plano diplomático esta ideia mantem-se igualmente válida. As já frágeis, debilitadas e ténues relações entre a União Europeia e a Turquia sofreram um novo revés. E se por um lado a Europa procurou, num primeiro momento, distanciar-se da Turquia, por outro lado, é da máxima conveniência que se estabeleça uma nova convergência geoestratégica e geopolítica.

O resultado do referendo turco que, em abril do presente ano, veio a permitir ao Presidente Turco, Recep Tayyip Erdogan, consolidar os seus poderes através de uma série de alterações à Constituição Turca, foi o epicentro do primeiro, de uma série de abalos, que vieram a abrir brechas nas relações com a Europa.

O carácter antidemocrático e anticonstitucional deste referendo, envolto na suspeita de fraude eleitoral, permitiu ao Presidente turco obter uma série de novos poderes constitucionais, entre os quais, a possibilidade de extensão do mandato presidencial até ao ano de 2029. A virtualidade destes poderes virem a ser encetados levou a que o Parlamento Europeu, no passado dia 07 de julho, viesse a propor a suspensão das negociações da adesão da Turquia à União Europeia, sob a alegação de um verdadeiro “retrocesso” político e democrático.  

Todavia, o referendo não é, em si, um problema isolado. A tentativa de golpe de Estado, que justificou e deu ânimo à ao seu agendamento, afigura-se igualmente controversa, existindo até, elementos que outrora próximos de Erdogan (e agora exilados) que garantem ter-se tratado de um ensaio político. Certo ou não, facto é que o Presidente turco respondeu com pulso firme, ordenando a prisão dos principais opositores políticos, os quais, são considerados como principais responsáveis pela tentativa do golpe de Estado. Nas ruas, os protestos inflamaram, e entre centenas de detenções – muitas das quais demonstraram ser autenticamente arbitrais – registaram-se várias mortes. A comunidade internacional reagiu, somaram-se as críticas, e entre as vozes discordantes, o Parlamento Europeu fez-se ouvir, qualificando a atuação do Presidente turco como uma “regressão nos domínios do Estado de Direito e dos direitos humanos”. Para a Europa, estes são contornos políticos bastante definidos, e que apresentam traços bastante similares aos regimes ditatoriais.

A defesa pela reintrodução da pena de morte e o apoio ao ensino religioso (muçulmano) adensaram as críticas a Erdogan. Para a Europa, a abolição da pena de morte é condição sine quo non da adesão à União, e a sua possível reintrodução defrauda quaisquer das espectativas que hajam sido levadas à mesa das negociações. Igualmente, o anúncio de que o ensino da corrente científica evolucionista será retirado das escolas turcas, proferido por Alpaslan Durmus, diretor do Conselho de Educação, levou à consideração de que a Turquia pretende abandonar, gradualmente, o secularismo, regressando à época anterior a Mustafa Kemal Atatürk (1923).

A ferocidade das críticas europeias parece, no entanto, não incomodar o Presidente turco, nem fazer surtir qualquer outro efeito, que não político e mediático. Em boa verdade, a atitude europeia face à Turquia contribuiu para um factor, descrito como um game changer, que veio a beneficiar principalmente a política do Presidente turco. Em mãos com uma Europa que o despreza, Erdogan, anteriormente desavindo com Putin, perspetivou a abertura diplomática russa como uma grande oportunidade, da qual, inevitavelmente, se soube aproveitar. O estreitamento dos laços diplomáticos entre Moscovo e Ancara, não era uma possibilidade real que fizesse recuar as políticas comunitárias. Para os europeus a Turquia havia-se isolado, sobretudo após o caso dos aviões russos abatidos na fronteira entre a Turquia e a Síria, por caças turcos. Para espanto de todos, a aproximação diplomática entre os turcos e os russos deu-se, prima facie, circunscrita ao teatro de operações sírio, mas que mais tarde aprofundou-se em medidas de cooperação comercial e militar, entre as quais mais se destacam o alargamento das trocas comerciais, a construção de um gasoduto entre a Rússia e a Turquia, a construção de uma central nuclear na Turquia, e a aquisição do sistema russo de defesa antiaéreo.

Dir-se-ia que este foi um revés no dossiê diplomático da União Europeia, e que desembocou num profundo desconforto para a NATO, que de ora em diante, terá de conviver com a presença intensificada dos russos, que pela travessia do estreito de Bósforo (Istambul), veem praticamente garantido o seu acesso ao mediterrâneo através do mar negro.

Se esta inversão geoestratégica já é, per se, suficiente para causar fortes dores de cabeça aos europeus, é preciso ainda ter em conta que a Turquia tem várias peças deste xadrez muito bem posicionadas e que podem vir a alterar, com igual profundidade, a situação geopolítica.

Considere-se por instantes, o caso dos refugiados. O acordo firmado entre a União Europeia e a Turquia em Bruxelas, a 18 de março, prevê, em grosso modo, o retorno ao território turco, de todos os migrantes que hajam por essa via tenham entrado no espaço europeu. Dado a assunção deste compromisso, a Turquia ficou investida do dever de encetar todas as medidas úteis e necessárias para colocar termo às rotas terrestes e marítimas dos migrantes, passando a decidir sobre os pedidos de asilo. Em contrapartida, a União Europeia dispôs-se a atribuir uma dotação de cerca de 6 mil milhões de euros (até ao ano de 2018). Porém, o cumprimento do acordo firmado importa mais à União Europeia que à Turquia, pelo que esta é uma prerrogativa que a todo o tempo pode ser utilizada a favor do Presidente turco. Observe-se que já no passado a questão atinente aos refugiados levou a um constante desentendimento entre os Estados-membros, o qual teve como efeito uma profunda crispação política no seio europeu, e que, em ultima ratio, ditou a suspensão do Regulamento de Dublin. Tendo ciente a multiplicidade de interesses que, por via, do incumprimento do acordo, podem ser afetados, convém não perder de vista que o desbloqueio das fronteiras turcas, que a todo o momento pode ser utilizado como represália a qualquer momento.

A possibilidade de Erdogan desbloquear as suas fronteiras é igualmente revelante por dois outros motivos essenciais: em primeiro lugar, porque o território turco é um ponto estratégico de combate ao Estado Islâmico; em segundo plano, porque a Turquia serve de Estado-tampão ao fluxo de entrada de membros do Estado Islâmico na Europa, o que se revela especialmente importante, num momento, em que se assiste a um abandono desfasado do secularismo.

Por tudo isto considerado, resulta que a posição da Turquia, no seu relacionamento com a Europa, evoluiu de forma bastante considerável. Hoje existem argumentos mais que suficientes para que os europeus se sentem à mesa com os turcos num nível igualitário. Persistir numa atitude de preponderância, de crítica constante e de recurso às sanções políticas e financeiras, não é mais frutífero, nem se releva como um meio adequado para lidar com as sensibilidades regionais. A Europa necessita de adotar especiais cautelas e reconhecer que as circunstâncias não estão a seu favor.  A hostilidade é um caminho sempre melindroso, que (re)conduz a que se comentam os mesmos erros de outrora: todos temos presente, a título de exemplo, que a subjugação da Alemanha impeliu o mundo para duas grandes guerras.

Se é que a Europa teima em aprender com a sua História, resta-lhe, pelo menos, a seguinte lição: para jogos de xadrez não se trazem peças de damas!