Tavira e o «25 de Abril de 1974»

14:48 - 24/04/2018 OPINIÃO
Por: Miguel Peres Santos – Mestre em Gestão Cultural pela Universidade do Algarve msantostavira@gmail.com | http://facebook.com/mapdsantos

Esta é a madrugada que eu esperava 
O dia inicial inteiro e limpo 
Onde emergimos da noite e do silêncio 
E livres habitamos a substância do tempo 

Sophia de Mello Breyner Andresen, 25 de Abril in 'O Nome das Coisas'

A 25 de Abril de 1974 era desencadeado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), um golpe de estado que colocava fim ao regime autoritário e ditatorial do “Estado Novo”, seguindo-se um processo revolucionário único e marcante na História de Portugal e que levou aos portuguese à democracia, à liberdade e à igualdade. Se a nível nacional começavam a surgir as figuras que combateram o regime, em Tavira todos se perguntavam quem seriam os rostos dos novos movimentos democráticos e que dinâmicas teriam os mesmos no futuro do concelho, Tavira assistiu a estes momentos, talvez como um dos mais quentes da sua história recente.

Logo num primeiro momento, o “25 de Abril”, apresentou-se como um movimento que pretendia de uma vez por todas acabar com o poder instalado pelo “Estado Novo” e pela sua vertente corporativa mas também é verdade que o mesmo evitou o vazio de poder a nível do poder local, como se verificou em Tavira, tendo o Eng. Luís Filipe Távora se manteve em funções como Presidente da Câmara Municipal, assim como o seu executivo composto por Vasco Vieira da Mota, Abílio Costa da Encarnação, José Joaquim Gonçalves, José Emídio Fernandes Sotero e Manuel Gil Fernandes Lapa, que ficaram aguardando pelo desenrolar doa acontecimentos. Foi neste contexto e por iniciativa do Presidente da Câmara Municipal de Tavira em funções, que o executivo municipal se reuniu extraordinariamente a 30 de Abril de 1974 para analisar a situação política após o golpe militar, deliberando por unanimidade os seguintes pontos:

“(…) a) Saudar, reconhecer e apoiar a autoridade da Junta de Salvação Nacional e continuar a pugnar pela defesa dos altos interesses, na conjugação de esforços para a continuação das grandes obras;

b) Saudar e desejar à população o maior respeito pela ordem, trabalho e deveres cívicos de todos os cidadãos, para que a acção da Junta de Salvação Nacional seja facilitada a alta missão que foi incumbida

c) Transmitir por telegrama a Sua Excelência o Presidente da Junta de Salvação Nacional, General António de Spínola, esta deliberação, as saudações do povo do concelho e desta Câmara Municipal (…)”

 ARQUIVO MUNICIPAL DE TAVIRA, Livro de Actas da CMT (1974-1975), Sessão de 30/04/1974, Fls. 8-9

Esta decisão do Presidente e dos restantes vereadores demonstra uma tentativa de se colocar “ao lado” da nova situação política, mas as funções deste executivo municipal foram de mais ou menos dois meses, pois o Decreto 236/74, de 18 de Junho, imposto pelo I Governo Provisório, obrigava a que os Presidentes e Vice-Presidentes das Câmaras Municipais fossem exonerados.  

Na tarde do dia 18 de Junho, após a divulgação em Diário do Governo, e segundo as informações que foram divulgadas à época pelo Jornal “O Tavira”, o Presidente da Câmara Municipal Eng Luís Filipe Távora e o Vice-Presidente Vasco Viera da Mota, despediram-se dos funcionários camarários numa cerimónia simples e restrita (Jornal “O Tavira”, Nº 33, 27/06/1974, P. 1). As novas funções de presidência foram atribuídas ao Vereador José Emídio Sotero, devido ao impedimento do Vereador mais velho, Abílio Costa da Encarnação, e este tendo sido substituído, por José António de Oliveira.

A primeira reunião do novo executivo teria lugar a 21 de Junho, onde o novo responsável pelo município esclareceu os muitos tavirenses presentes na sala, que as suas funções eram “meramente transitórias” (ARQUIVO MUNICIPAL DE TAVIRA, Livro de Actas da CMT (1974-1975), Sessão de 21 de Junho de 1974, Fls. 40) até à entrada em funções da nova Comissão Administrativa, esclarecendo que não vissem nele “o Presidente da Câmara mas sim o Tavirense que, enquanto investido no cargo, o desempenhará com o maior interesse e devoção pelo Concelho” (ARQUIVO MUNICIPAL DE TAVIRA, Livro de Actas da CMT (1974-1975), Sessão de 21 de Junho de 1974, Fls. 40). A 10 de Outubro de 1974, a Comissão Administrativa que faria a transição democrática a nível local tomava posse, terminando assim as funções deste executivo municipal ainda com ligações ao “Estado Novo”, mas que evitou o vazio de poder e uma transição pacífica para os poderes ligados ao regime democrático, respeitando assim os anseios da população tavirense.

Nos primeiros dias após o golpe militar de “25 de Abril”, verificou-se também uma ponderada reserva nos eventos festivos, o mesmo não se pode dizer das movimentações políticas que foram surgindo dentro da sociedade tavirense, sendo o Movimento Democrático Português (MDP), o mais visível e destacado de todos, sendo este grupo o responsável pela primeira manifestação organizada de apoio ao MFA realizada em Tavira, como se pode ler na comunicação feita pela Comissão Concelhia Provisória do MDP de Tavira no Jornal “O Tavira”:

“A Comissão Concelhia provisória da C.D.E. comunica e convida a população de todo o concelho a assistir à manifestação pública que se realiza na Praça da República, em Tavira, no dia 5 de Maio, pelas 16 horas, afim de se comemorar a libertação do País, pelas Forças Armadas, na data histórica de 25 de Abril. – A Comissão Concelhia Provisória” (Jornal “O Tavira”, Nº 29, 3/05/1974, ANO II, P. 3)

 

Comunicado à população de Tavira do Movimento Democrático Português (MDP), Fonte: Jornal “O Tavira” (1974)

Apesar desta comunicação, que promovia uma manifestação para o dia 5 de Maio, a população da cidade de Tavira juntou-se para comemorar e manifestar de forma espontânea, o seu apoio ao MFA, no dia 1 de Maio, data comemorativa do Dia do Trabalhador, instituído feriado nacional pela Junta de Salvação Nacional (JSN), e que havia sido proibido de celebrar pelo regime durante mais de 40 anos. Esta manifestação depois de percorrer as principais ruas da cidade ao som da Banda de Tavira, juntou-se para saudar as Forças Armadas concentrou-se na Praça da República por volta das 18 horas, para ouvir de uma das janelas do Edifício dos Paços do Concelho a palavra de alguns reconhecidos e assumidos democratas tavirenses. Começou por usar da palavra Joaquim Teixeira, solicitador em Loulé, seguindo-se os cidadãos tavirenses: José Sequeira, Joaquim Valente, Guilherme Camacho, Eduardo Palma, Dr. Eduardo Mansinho, e Rui Figueiredo, que foram unanimes nas ideias e nas palavras, centradas na repressão do anterior regime e nos motivos que levaram o país a uma crise económica e política. Depois de ouvidos os discursos e tocado o Hino Nacional por parte da Banda de Tavira, a multidão dirigiu-se para o Quartel Militar do CISMI, como forma de agradecimento aos militares pelo seu contributo na queda do regime do “Estado Novo”. (Jornal “O Tavira”, Nº 30 16/05/1974, ANO II, P. 1)

Manifestação da população tavirense realizada no dia 1 de Maio de 1974, na Praça da República (Tavira)

 Fonte: Jornal “O Tavira” (1974)

No dia 5 de Maio, nova multidão voltou a juntar-se na Praça da Republica, desta vez para a manifestação organizada pelo MDP de Tavira, primeiramente para ouvir o comunicado deste movimento, onde se propunha a demissão de algumas entidades administrativas e escolares e depois para ouvir algumas individualidades ligadas ao MDP. No uso da palavra, falou o Dr. Dias da Costa que se elevara a mentor de todas as movimentações, seguindo-se Manuel Rodrigues Pereira (de Olhão), João Camacho (de Mértola), Manuel Bom (da Fuzeta) e Guilherme Camacho, que seguiram nas suas palavras o que já havia sido dito no comunicado. (Jornal “O Tavira”, Nº 30 16/05/1974, ANO II, P. 1)

Em Santa Catarina da Fonte do Bispo, uma das freguesias mais rurais do concelho de Tavira, também fora divulgada no dia 4 de Maio, que haveria uma manifestação no dia seguinte em Tavira, mas a distância entre as duas localidades e o interesse da população em celebrar o “25 de Abril” era muito grande, mas a inviabilidade de deslocação para maioria das pessoas, o que fez com que a população que se juntasse em grupos. Estas pessoas seriam surpreendidas pela manha do dia 5 de Maio, com a rua principal e o largo da Igreja inundado de panfletos com palavras de ordem relacionadas com o momento politico que atravessava o país. Seria por volta das 14 horas, que estas se começariam a concentrar no largo da Igreja, para ouvir discursar o reconhecido democrata de Santa Catarina da Fonte do Bispo, Sr. José Gago Sequeira que divulgou a Comissão Executiva do MDP de Santa Catarina da Fonte do Bispo e o Dr. Carrapato, vindo de Faro e que se distinguia por ser um reconhecido advogado da região. Após estes discursos a população saiu ordeiramente em desfile pelas ruas da aldeia, dando cumprimento a uma das reivindicações apresentadas pela Comissão do MDP local: dar à rua principal o nome de Rua 1º de Maio e ao largo da Igreja de Largo 25 de Abril. (Jornal “O Tavira”, Nº 30 16/05/1974, ANO II, P. 2)

Após as primeiras manifestações democráticas, um pouco por todo o país, generalizou-se também a organização democrática de diversos movimentos, que tinham como objectivo a reivindicação de medidas de progresso social, politico e democrático. Em Tavira, estas movimentações, iriam ter lugar dentro de diversas associações, instituições públicas ou mesmo de forma espontânea em vários sectores da população, um pouco por todo o concelho.

A nível político além do MDP, que já falamos, iria surgir no Algarve uma comissão instalador do Partido Socialista para trabalhar a sua implantação a nível regional, deste grupo faziam parte os tavirenses Eduardo Mansinho (Advogado), Francisco Martins Pereira (Industrial) e Gilberto Ferro (Gerente Comercial), e seriam estes militantes que iriam constituir a base instaladora do núcleo deste partido no concelho de Tavira (Jornal “O Tavira”, Nº 30, 16/05/1974, ANO II, P. 7).

A nível das organizações profissionais, seria no dia 5 de Maio, que os Bombeiros Municipais de Tavira reuniram no seu quartel com as corporações de Faro, Loulé, Olhão, Lagos, Monchique, Portimão, São Brás de Alportel, Silves e Vila Real de Santo António como forma de demonstrar o seu total apoio ao programa da Junta de Salvação Nacional. Nesta reunião foi deliberado que fosse solicitado a reestruturação orgânica dos bombeiros e a dotação de melhor material para o desempenho da sua missão.

Alguns dias depois desta reunião, a 10 de Maio realizava-se uma Assembleia de Funcionários da Câmara Municipal de Tavira, com o objectivo de eleger um representante numa Comissão Distrital que tinha como objectivo organizar o Sindicato Nacional dos Funcionários Civis e Administrativos do Estado, essa escolha iria recair no Chefe de Secretaria, Manuel José Romana Martins. Como esta decisão foi votada por unanimidade, foi prestado o seguinte esclarecimento por esta Assembleia:

“Ao tomarem esta decisão, desejam os funcionários da Câmara Municipal de Tavira, no actual momento que o País atravessa em que se houve e lê com certa insistência o pedido de demissão de directores e chefes de diversos departamentos e serviços, manifestar ao seu chefe de secretaria de diversos departamentos e serviços, manifestar ao seu Chefe de Secretaria Sr. Manuel José Romana Martins, o total apoio e confiança de todos, podendo continuar a contar com o maior carinho, colaboração desinteressada e firme vontade de o ajudar no prosseguimento da obra em que tem sido trabalhador incansável para o bem comum e progresso do nosso concelho. Nesta manifestação, sincera e voluntária, ainda é justo realçar o facto do Sr. Romana Martins que não sendo de Tavira e somente aqui trabalhando há cerca de dois anos, ter dado o maior esforço, inteligência e grande vontade, muitas vezes com prejuízo da sua vida particular, na defesa dos interesses de Tavira e dos seus subordinados, como se nosso conterrâneo fosse.” (Jornal “O Tavira”, Nº 30, 16/05/1974, ANO II, P. 3)

A necessidade de um esclarecimento à imprensa e de uma justificação da escolha que fosse divulgada perante a população, assim como o conteúdo deste mesmo documento, demonstra por parte da Assembleia de Funcionários da Câmara Municipal de Tavira, alguma preocupação por parte dos seus membros, pois a escolha de uma figura que havia sido nomeada chefe de departamento pelo anterior regime poderia causar algum ruído entre os mais fervorosos democratas, podendo mesmo gerar e levar a alguma revolta em alguns sectores da população, e este tipo de situações num momento como este teria de ser evitado, pois além de questões de ordem pública, estava acima de tudo, a credibilização de algumas personalidades locais.

Outras classes profissionais e empresariais começavam a reunir-se para analisar a situação política, destacando-se os comerciantes, os empregados de comércio e os de escritório, talvez por este ser o maior sector mais representativo do concelho. No Grémio do Comércio, a 21 de Maio, numa assembleia presidida por Daniel Cunha Dias, Liberto Camões Soares e Joaquim Gil e uma assistência composta por associados representantes de Tavira, Vila Real de Santo António, Castro Marim e Alcoutim, iniciou-se aquela a que a imprensa local da época caracterizou como a “a mais ruidosa das assembleias a que temos assistido” e onde foi “muito difícil qualquer interveniente fazer-se ouvir em silêncio” ou mesmo “aprovar-se qualquer proposta ou chegar-se a conclusões” (Jornal “O Tavira”, Nº 21, 30/05/1974, ANO II, P. 4).

Com a presença de vários dirigentes sindicais, vindos de Faro, reuniram-se a 24 de Maio no Salão de Festas do Quartel dos Bombeiros, os empregados do comércio e escritório com a finalidade de nomear uma comissão concelhia para representar estas classes profissionais junto da delegação regional do sindicato, em Faro, assim como esclarecer a necessidade desta estrutura na defesa dos trabalhadores. A comissão concelhia seria composta pelos tavirenses Maria José Pereira Ramos, Rita Cristo, Lino Manuel Bento (representantes do comércio), Silvino Mário Oliveira, Victor Pereira e Manuel Martins Bagarrão (representantes dos escritórios). Esta comissão apresentou desde logo o seu caderno reivindicativo (Jornal “O Tavira”, Nº 21, 30/05/1974, ANO II, P. 4).

Depois de muitos anos de repressão e perseguição a quem fosse contra o poder estabelecido pelo “Estado Novo”, os tavirenses como se verificou um pouco por todo o país iria aderindo voluntariamente às iniciativas democráticas, começando assim uma vivência, de liberdade e de participação política que iria marcar sobretudo os meses que se seguiram ao “25 de Abril”, fazendo deste período, uma época ímpar na história local.

 

Jornal “O Tavira”, 16/05/1974, Nº 30, ANO II