PALAVRAS DE FOGO: DESAFIO PARA UM RENASCER | A POESIA SALVA O MUNDO!

09:22 - 03/04/2022 OPINIÃO
Por: Padre Carlos Aquino | effata_37@hotmail.com

“No princípio era a Palavra” (Jo 1, 1). Trago este verso tão luminoso de um autor sagrado, para falar da poesia, selo da voz humana e lugar para Deus, sendo, também Ele, lugar da própria poesia. Na verdade, poderia dizer-se: “No princípio era a Poesia”.

Esta pertence inteiramente ao sagrado. O seu espaço próprio é o transcendente, o divino, o inefável, dimensões originais do seu ADN. Seduz-me acolher a linguagem poética como uma linguagem sagrada que, por isso mesmo, se dirige às necessidades primeiras do corpo e da alma não vivendo asfixiada na estreita imanência. A poesia é evocação e revelação. Por isso, ela é o último reduto do humano capaz de conduzir a um estremecimento diante do mistério e da realidade das coisas que permanecem em aberto.

A poesia ao fazer emergir a realidade transfigura o universo. Os versos libertam as coisas. Ainda que no jogo do fingimento. Mas nunca imergidos na mentira. Também sinto que a poesia implica mais do que se explica, como dizia Sophia. E nesse sentido também, a poesia salva. Por uma palavra. E é nas palavras que nos dizemos e revelamos. Aproximamo-nos da verdade e a manifestamos. Por isso, também podemos salvar.

A poesia ou começa na vida ou não começa – assim o disse um dia, tão incisivamente, Eugénio de Andrade. E assim ela se torna a festa da linguagem gerando relação e comunhão. Uma linguagem que nasce sempre duma solidão habitada. Escreve-se poesia para habitar o silêncio. Como quem ora.

E alguns versos, palavras, podem ganhar asas e dizer o sentido profundo do ser e do mundo. E vêm à luz quando o seu chão é também pisado por outros peregrinos do silêncio. Buscadores da verdade última das coisas, do seu significado e da sua intacta beleza. Escreve-se poesia para habitar a verdade e a transparência, a luz e a liberdade.

Por isso, “a poesia é arte de resistir ao tempo” como o disse tão luminosamente José Tolentino Mendonça. Penso ser a poesia essa maneira humilde e misteriosa de um dizer a existência conservando a eternidade que está latente nas coisas. A poesia que é para ser dita e escutada, essa que nos deslumbra maravilhados perante o mistério que se anuncia pelas palavras, ensina a olhar e ensina a liberdade, o caminho, o sentido, a harmonia para lá do caos.

Nesta hora, em que suplicamos pelo dom da Paz, deixemos que a poesia nos cure e salve: “Ode à Paz/ Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,/ Pelas aves que voam no olhar de uma criança,/ Pela limpeza do vento, pelos atos de pureza,/ Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,/ Pela branda melodia do rumor dos regatos,/ Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,/ Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,/ Pela exatidão das rosas, pela Sabedoria,/ Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,/ Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,/ Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,/ Pelos aromas maduros de suaves outonos,/ Pela futura manhã dos grandes transparentes,/ Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,/ Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas/ Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,/ Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,/ Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz./ Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,/ Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,/ Abre as portas da História, /deixa passar a Vida/ (Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"