Faleceu Vítor Tenazinha, um dos nossos maiores heróis da estrada, quando cada pedalada era o limite

11:01 - 25/09/2022 OPINIÃO
Por Neto Gomes

Nunca o chamei ao pódio, porque éramos de gerações diferentes na estrada, porque no tempo em que eu dava voz ao ciclismo, ele iniciava a longa via de virar frangos, após uma estendida emigração nos Estados Unidos, onde amealhou os tostões que as bicicletas nunca lhe deram e assim se fez à vida. A uma vida, que se rompeu definitivamente no passado dia 6 de setembro.

            Dois dias depois, a igreja da Misericórdia ficou apinhada de gente que gostava do Vítor Tenazinha e depois, já em cima das quatro da tarde, no cemitério de Boliqueime, a dois palmos da Igreja, antes da urna descer à terra, levantei a voz para pedir uma grande salva de palmas, ruidosamente correspondida.

            Tinha Vítor Tenazinha 17 anos, faria 18, a 25 de Outubro, quando fez pela primeira vez a Volta a Portugal, ou seja, a XXIII volta, levando como companheiros de estrada e integrando a equipa do Louletano Desportos Clube, Francisco Brito, João de Deus, António Madeira, Manuel Perna Coelho, João Carlos, Delfim Baptista, José Correia e Francisco Faustino, os jornais, nesta primeira volta, sempre o trataram como Vítor de Sousa, porque foram buscar o Sousa, ao seu último nome Vítor José Tenazinha de Sousa.

            O pior é que tal informação jornalística, começava a criar algum embaraço em Loulé, com o povo unido ao ciclismo e ao Louletano, a interrogar-se: - É pá! Então aquele moço da Maritenda, que tanto promete, o Tenazinha, não foi à volta?

            Dias depois, porque o eco tinha chegado ao Dr. Manuel Gonçalves, companheiro de todas as jornadas de Vítor Tenazinha, lá se fez a emenda, e os jornalistas começaram a apregoar o nome de Vítor Tenazinha.

                O moço da Maritenda, que às vezes se escrevia que era da Maritenda e outra vezes de Boliqueime, foi sempre um homem de Loulé e um grande Louletano, porque mesmo quando daqui saiu, por razões que esta meia dúzia de linhas não nos permitem tanger, para representar o Benfica e depois o Sporting fê-lo sempre revoltado e com uma lágrima no olho. O Louletano e o seu primeiro treinador, que ele diz que foi o único que teve, Joaquim Apolo, eram tudo para ele.

            Vítor Tenazinha, que foi também uma das maiores referências do ciclismo nacional do seu tempo, era um bravo, um lutador e um intolerante em cima da bicicleta.

            E neste tempo de despedida de um dos nossos maiores, fomos buscar ao amontoado de papéis que guardamos em casa no nosso arquivo morto, pequenos salpicos da vida autêntica de Vítor Tenazinha, em cima da bicicleta e equipado com as cores do LDC, que eram confundidas com as cores do Leixões, que em certas ocasiões também andava na volta.

A sorte é que encontrei uma nota de 20 escudos num dos bolsos dos calções

Recuperamos aqui, salpicos de conversas que um dia tivemos com Vítor Tenazinha, em memória de um Porto-Lisboa.

E que história é essa?

- O carro do Louletano era um descapotável de 8 cilindros que tinha sido oferecido pelo Eng.º Farrajota, hoje já não me lembro do nome completo do homem. A verdade é que o carro gastava muito e o Louletano para minimizar o consumo misturava um produto, que não me recordo o nome, com a gasolina. A verdade é que por vezes a mistura acabava por impedir que o carro pegasse. Uma vez, neste Lisboa – Porto, quando chegámos ao primeiro abastecimento nem vimos o carro de apoio, nem os dirigentes, nem a comida, o que acabou por acontecer ao longo dos 350 e muitos quilómetros do percurso. A minha sorte, foi que descobri nos bolsos dos calções uma nota de vinte escudos e mal tive oportunidade parei numa taberna à beira da estrada e comprei duas sandes.

E depois?

- Depois enganei o corpo e a alma. E quando o carro chegou a Lisboa já era noite dentro…Claro que viemos comendo o reabastecimento até Loulé onde só chegámos no dia seguinte, porque o carro às vezes ficava engasgado…

 

Quando eu atravessava Loulé ou corria na pista, o povo entrava em delírio

 

Como classificas a tua carreira?

- A única coisa que posso dizer é que tenho orgulho de tudo quanto fiz como ciclista. Numa tive um treinador que me ensinasse nada. A minha cabeça, mas sobretudo a minha força, é que fizeram de mim o ciclista estimado em todas as equipas por onde passei, mas principalmente no Louletano. Quando eu atravessava Loulé ou corria na pista o povo entrava em delírio.

Factos importantes da tua carreira?

- Fiz dez voltas a Portugal e só desisti na primeira por ter fracturado uma clavícula. Em todas as outras ganhei etapas e fiz bons lugares, e em quase todas elas era quase sempre o único ciclista do louletano que chegava ao fim.

 

Legenda:

Alberto Narciso, então diretor do Louletano, entregando a Vítor Tenazinha, a medalha de Federação Portuguesa de Ciclismo, em prata dourada, a 10 de Outubro de 1960, pela conquista do campeonato nacional de ciclocrosse em 1960

 

Estive duas vezes na Volta ao Estado de S. Paulo e cheguei a vestir a camisola amarela, e só não ganhei em 1965, apesar de ter estado muito doente na véspera, com febres que me fizeram perder os sentidos, porque o Sérgio Páscoa em vez de defender a minha camisola fugiu, fugiu e estragou tudo o que eu tinha feito.

Venci o Prémio Larangina C, que era uma espécie da actual Volta a Portugal, mas talvez mais difícil pelas dificuldades e qualidade dos corredores. Nesse tempo havia corredores de nível internacional e muitos deles, tal como eu, representávamos o País ou os nossos clubes no Brasil, em França, em Espanha.

Fui 22.º na Volta à França do Futuro.

Perdi por quatro segundos o Prémio Robialac. Foi em 1962. Perdi num contra-relógio por equipas em que eu era o único corredor do louletano em prova e fui integrado numa equipa que não me ajudou.

Fui segundo num Lisboa – Porto correndo pelo Sporting. E quando tinha 18 anos ganhei seis minutos ao Jorge Corvo num contra-relógio de 100 quilómetros, Faro, Lagoa e Faro.

 

Tenho orgulho da minha carreira e muitas saudades do Bexiga Peres, Joaquim Apolo, Manuel Costa e Manuel Gonçalves

 

E quem foram os teus treinadores?

- Quais treinadores? Se calhar o único que me ensinou alguma coisa foi o Joaquim Apolo e conheci o Bexiga Peres, que era tudo na equipa, o Manuel Costa, a mesma coisa, depois no Sporting trabalhei com o Manuel Graça, no Benfica com o Sousa Santos, mas era tudo boa gente. Boa gente, nada mais…

Depois, Vítor Tenazinha olha para mim e diz: - Tu nem sabes a força que eu tinha…

Quem foi para ti o melhor corredor?

- Conheci grandes corredores, corri com quase todos eles, de quem guardo boas memórias, mas existem outros que ouvi falar que eram muito bons corredores.

Depois avança com uma mão cheia de nomes: - Mealha, Joaquim Apolo, Alves Barbosa, Ribeiro da Silva (morreu muito cedo quando era ainda um rapaz), Jorge Corvo, João Roque, Fernando Mendes, Joaquim Agostinho, Agostinho Correia, Leonel Miranda, Valério Clara, Manuel Perna Coelho, Delfim Baptista, José Dias (que tinha tudo para ser um grande ciclista, mas partiu uma perna e depois abandonou as corridas) e tantos outros…

 

            Quando o Tavira negou a me emprestar uma bicicleta

 

            Vítor Tenazinha é um mundo de histórias que nunca mais acabam, contudo, não posso nem devo deixar de lembrar um dos episódios que mais marcaram a carreira de Tenazinha e que ainda hoje lhe prende a garganta:

- Tinha tudo para ser nesse ano o Campeão Nacional. Bexiga Peres era um grande dirigente e nunca deixava nada ao acaso para que ficássemos bem instalados.

Desta vez ficávamos hospedados na Pensão Tomarense em Lisboa. Eu tinha uma grande fé. Mal cheguei à Pensão fui logo massajado pelo enfermeiro Palminha. Eu estava de facto muito bem.

 

Legenda:

Edmundo Bota, Manuel Costa e Desidério Palhinha.

Em baixo: Vítor Tenazinha, Valério Clara, Manuel Perna Coelho, José Dias (não conseguimos identificar)

 

Mas o que é que aconteceu?

- Mal começou a prova tive um furo, mas pouco depois e com toda a facilidade apanhei o pelotão. Faltavam aí 40 quilómetros para o final voltei a furar e voltei a chegar à frente, só que pouco depois parti o quadro da bicicleta quando atravessávamos o Montijo. Bexiga Peres aproximou-se de mim e disse-me que ia pedir uma bicicleta emprestada ao Tavira, porque nós não tínhamos nenhuma bicicleta.

Nesse período enquanto a bicicleta do Tavira não chegava, pedi emprestada uma pasteleira a um popular e fiquei na cauda do pelotão aguardando a chegada do Bexiga Peres. Contudo, qual não foi o meu espanto e desânimo quando o Bexiga Peres me disse: - Pára. O Tavira negou a bicicleta. Pára Tenazinha! Gritou ele outra vez. Ambos ficámos a chorar agarrados um ao outro porque não esperávamos essa atitude do Tavira o que me obrigou a desistir. O que lá vai lá vai e sempre tive grandes amigos em Tavira, mas ainda hoje quando me recordo deste episódio fico com um nó na garganta. Aliás, o Dr. Manuel Gonçalves conhece bem esta história.

 

Por culpa do Vamos andando, quando chegámos à partida, já a etapa tinha começado

 

Agora uma história engraçada para terminarmos esta bela conversa que estamos a ter.

- Em certa Volta a Portugal nós tínhamos dois carros de apoio. Um que era um táxi do Vamos andando e outro do Rosária.

Nesse dia terminámos uma etapa em Viseu e fomos dormir para S. Pedro do Sul, que era sempre a descer. Como o Louletano não tinha muito dinheiro, embora ficássemos a dormir em coisas muito limpinhas, ficávamos sempre muito longe da partida.

Na manhã seguinte arrancámos para a meta. Eu e o Delfim Baptista e outro corredor que não me recordo o nome viemos no carro do Vamos andando, que não andava quase nada. Em certa altura e porque o carro do Vamos andando não andava nada, gritei-lhe: - É pá tens que acelerar ou então chegámos atrasados… O Vamos andando, falou, falou…mas a verdade é que quando chegámos à partida já o pelotão estava na estrada há mais de sete minutos.

Eu e o Delfim Baptista fizemos um autêntico contra-relógio e fomos agarrar o pelotão dentro da Cidade da Covilhã. Depois deu-me uma dor nos rins. Parei, massajei, o Delfim deu-me uma ajuda e alguma moral e fizemo-nos outra vez à estrada. Nesse dia apeteceu-nos matar o Vamos andando, cujo táxi não andava nada…

            Grato à Voz de Loulé, que tantas vezes deu a voz ao Vítor Tenazinha, por nos ter permitido a utilizar as suas páginas, para neste derradeiro olhar sobre a vida do moço da Maritenda, das Benfarras, ou de Loulé, pouco importa, homenagearmos um dos heróis da estrada, que nestes últimos oitenta e nove anos, desde 1933 fizeram a História do Ciclismo louletano…  

 

Legenda:

Cartaz que anuncia a 11 de outubro de 1964, uma prova em homenagem a Vítor Tenazinha