Entrevista | Jenny Silvestre, Diretora do Laboratório de Ópera Portuguesa, fala do espetáculo «Cortes de Júpiter»

15:00 - 26/10/2022 ENTREVISTAS
O espetáculo «Cortes de Júpiter», de Gil Vicente, estará no Cineteatro Louletano a 28 e 29 de outubro.

Uma encenação e adaptação dramatúrgica de Ricardo Neves-Neves, composição de música nova do compositor e pianista Filipe Raposo, com a participação do ensemble La Nave Va e direção musical de António Carrilho. Participa ainda o Alma Ensemble, com coordenação vocal de Filipa Palhares. Nesta entrevista, Jenny Silvestre, Diretora do Laboratório de Ópera Portuguesa, fala-nos sobre este espetáculo. Esta é a primeira obra a sair do Laboratório de Ópera Portuguesa, criado no CCB em parceria com a Academia Portuguesa de Artes Musicais e o CESEM.

 

A Voz do Algarve (V.A.) - Fale-me um pouco do seu percurso profissional.

Jenny Silvestre (J.S.) - Sou formada em Direito e em cravo, instrumento muito em voga durante o período barroco, o que me permitiu dar asas à minha paixão pela História e temáticas antigas. Mais tarde, doutorei-me em Ciências Musicais Históricas e, em paralelo, realizei uma pós-graduação em Gestão de Investimentos e Internacionalização. Fundei e sou presidente de uma associação, a Academia Portuguesa de Artes Musicais, que tem desenvolvido ao longo dos anos vários projetos dedicados à aproximação do grande público com a nossa herança histórica comum, utilizando a música clássica como canal de interligação de temáticas ela relacionadas, tendo como âncora os afetos e uma postura muito próxima com cada espectador, de forma a tornar a experiência o mais plena possível.

 

V.A. - Porquê a criação de um Laboratório de Ópera Portuguesa? Quando este surge e quais os seus principais objetivos?

J.S. - Trata-se de um sonho antigo. Por um lado, preocupou-me sempre o facto de termos tantos arquivos cheios de obras por recuperar e trazer à luz do dia. O facto de muitos dos trabalhos já resgatados das teias de aranha dos arquivos pelos colegas investigadores permanecerem nas bibliotecas das universidades a criar «punhos de renda em pó», mudando apenas a roupagem, e, enquanto isso, o mais importante, que é preencher as lacunas do conhecimento do nosso passado, continuar por cumprir. Por outro, o défice de formação em expressão dramática que os nossos cantores continuam a sofrer nas Escolas Superiores de Música. Hoje, contamos já com várias gerações de cantores tecnicamente de «primeira água», mas que poucas oportunidades têm de vestir personagens de forma plena. Finalmente, a necessidade que considero existir de desmontar um certo preconceito que existe em relação à ópera, principalmente por parte das novas gerações. A ópera pode ser, não só divertida, como muito próxima de nós. Mesmo que possamos resgatar temas de um passado remoto, a ópera pode fazer-nos entrar numa cápsula de tempo desempoeirada e divertida, porque o devir histórico é feito de ciclos que partilham sempre pontos em comum. Essas as razões que me levaram a formular a proposta de criação do Laboratório de Ópera Portuguesa ao CCB.

 

V.A. - Como nasce a ideia de interpretar o auto «Cortes de Júpiter», de Gil Vicente?

J.S. - Todos nós aprendemos Gil Vicente na escola, mas um Gil Vicente…como direi…«a seco». No entanto, quando lemos qualquer um dos seus textos, percebemos que vai dando indicações de momentos em que se canta, escrevendo mesmo as letras ou pequenas frases iniciais. Portando, as peças tinham música cantada e até danças. «As Cortes de Júpiter» foi a última peça a que o nosso Rei D. Manuel I assistiu em vida. Faleceu pouco tempo depois. Recuámos ao ano de 1521. Portanto, há 500 anos. É uma obra muito divertida e celebra a partida da Infanta D. Beatriz, uma das filhas do rei, para Sabóia, para lá se juntar ao seu marido. Resulta que, da pouca música do tempo vicentino que sobreviveu até hoje, encontramos «Niña era la infanta», que pertence a esta tragicomédia e que foi um verdadeiro hit daquela época. Como defendo há muito que Gil Vicente está na base do desenvolvimento do que viria a ser conhecido, mais tarde, na Península Ibérica como Drama em Música, manifestação prévia à introdução do modelo operático de matriz italiana, que sobrevive, ainda hoje, nas populares zarzuelas espanholas, considerei encerrarem «As Cortes de Júpiter» todos os predicados para se transformar no 1º título do nosso Laboratório, proposta que o CCB aceitou muito generosamente.

Fotos de Rita Carmo | D.R.

 

V.A. - Foi fácil transformar este texto de Gil Vicente numa «ópera»?

J.S. - Não foi fácil e, na realidade, não se trata propriamente de uma ópera, mas antes de uma espécie de drama em música. Ressalvo apenas que o Laboratório de Ópera Portuguesa assume o termo de forma abrangente, incluindo nele, não apenas dramas em música, como operetas. Diria que o desafio alicerçava em dois pontos muito concretos: por um lado, o facto de termos no decurso do texto as entradas referentes aos momentos cantados, muitos dos quais não sobreviveram até hoje ou, simplesmente não foram ainda redescobertos; por outro lado, a própria língua, uma vez que o português utilizado corresponde, como sabemos, a uma fase de transição entre o arcaico e o moderno. Contudo, com o trabalho fantástico dos investigadores do CESEM, o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, com quem detemos uma parceria permanente, de forma a garantir um resultado historicamente informado, para nós fundamental, foi-nos possível determinar o que de concreto poderíamos recuperar e a fronteira a partir da qual se impunha uma opção criativa. Optámos assim por assumir um corte efetivo, lançando a ponte com a contemporaneidade. E para tal, convidámos a dupla fantástica Ricardo Neves-Neves e Filipe Raposo. E não podíamos estar mais satisfeitos. O Ricardo Neves-Neves conseguiu um resultado fantástico no que ao discurso diz diretamente respeito, sem adulterar a métrica vicentina, mas garantindo a sua perceção. O Filipe Raposo utilizou a sua linguagem musical para emprestar a esta versão de Gil Vicente uma unidade incrível, onde os números musicais recuperados dos diferentes acervos históricos onde se encontram atualmente se harmonizam plenamente com as harmonias da música deste compositor tão atual.

 

V.A. - O que podemos esperar da apresentação deste espetáculo no Cineteatro Louletano?

J.S. - Podemos esperar um Gil Vicente único. Algo que ainda nunca tinha sido feito, mas cujo resultado vale mesmo a pena.

 

V.A. - Porque é que o público louletano e algarvio, se deve dirigir no dia 28 e 29 de outubro ao Cineteatro Louletano, para assistir ao espetáculo «Cortes de Júpiter»?

J.S. - O público deverá dirigir-se ao Cineteatro porque tem a garantia de um momento de entretenimento muito bem passado, onde o nosso passado se cruza com o presente, com o sentido de humor típico das encenações de Ricardo Neves-Neves. Aqui, Gil Vicente ganha uma dimensão totalmente nova, abrindo as portas para novas perspetivas de interpretação, sem perder a fantasia deste gigante da literatura e da sua dramaturgia, onde as personagens se transformam em peixes e nem sequer faltam mouras com poderes de condão.

 

Por: Filipe Vilhena