Fuga

18:12 - 19/10/2023 OPINIƃO
Joaquim Bispo, escritor diletante, http://vislumbresdamusa.blogspot.com/

O velho repisa, uma a uma, as escadas exteriores do lar de idosos, agarrado ao corrimão e, em passos miudinhos e hesitantes, avança pelo passeio afora.

«Parece a nossa rua, mas não sei...»

Tem ar de mais de oitenta anos, está de pijama, com um certo volume na zona da bacia, provavelmente uma fralda de adulto. No seu passinho, já percorreu uns cinquenta metros, sem ninguém o travar.

«Era ali. Era ali a mercearia. Mas agora não está lá. Como é que isto pode ser?»

Vejo-o parar e olhar em volta. Andará à procura de alguma coisa? Pouco depois recomeça a andar. A sua figura um pouco curvada de riscas azuis e cinzentas verticais não suscita a atenção de ninguém.

«Ela deve ter ido ao pão. Se lá for antes de almoço, talvez ainda arranje um pão de quilo.»

Imagino como se deve sentir desfasado do mundo. Cá fora, todos com os olhos metidos no telemóvel, sem respeitar nada, nem ninguém. Lá dentro, só velhos de olhar parado, afundados em recordações. E funcionárias ríspidas e mandonas. Faz bem em fugir, ir por aí afora, encontrar um pouco de coerência no mundo, um pouco de compaixão.

«Acho que vou já para casa. Ela já lá deve estar. Vou-lhe pedir pão com azeitonas, azeitonas grossas retalhadas, a saber a sal.»

Uma funcionária já veio à janela espreitar. Se calhar já deram pela falta do velho. Hei-de avisá-las ou deixo o velho escapar? A minha solidariedade vai para o velho.

«É já ali a nossa casa. Parece, mas não sei bem; está esquisita. Está tudo diferente.»

E se fazem mal ao velho? Não deve ter nada para roubar, mas nunca fiando. Há por aí muita malandragem. Se calhar ele ficava mais seguro no lar. Agora foi abordado por dois tipos. Espero que não… Não; parece que estão só a conversar.

— O senhor precisa de ajuda? — pergunta um dos rapazes, estranhando as roupas e o ar atarantado do velho.

Simão Cordeiro dá pelo jovem, os seus olhos castanhos orlados de cinzento completam um rosto de desorientação e angústia. A voz sai-lhe sumida: — Quero a minha mãe!