Por: Padre Carlos Aquino | effata_37@hotmail.com
Caríssimas Moscas, estimadas irmãs,
Andais por aí, zumbindo, pousando onde não deveis, assistindo aos nossos dias com os olhos compostos da indiferença. Incomodais. Viveis à margem, insubmissas à ordem e à estética. Sois insistentes como as nossas obsessões, inquietas como a nossa consciência e feias, porque não cabeis no ideal de beleza que criamos.
Hoje penso: dói, não é? Perceber que há tanto de nós nesses pequenos corpos alados. As moscas são testemunhas da decadência. Estão sempre presentes onde há morte, mas também onde há vida em fermentação. Pousam na fruta madura que se esqueceu na fruteira, no prato não lavado, nas feridas abertas. Tal como o ser humano, elas se alimentam do que está em transformação, não raro do que está a apodrecer.
E não é isso que também nós fazemos, tantas vezes? Vasculhamos memórias antigas, culpas não resolvidas, promessas não cumpridas. Vivemos do que já devia ter sido descartado, e com isso construímos a nossa história.
Mais que parasitas, as moscas são sobreviventes. Resistem ao frio, ao veneno, à palmada. Multiplicam-se onde menos se espera. E talvez seja aí que mais nos assemelhemos a elas: na persistência absurda, quase teimosa, de continuar existindo, mesmo quando tudo à volta parece querer o contrário.
Há quem veja as moscas como sinal de sujeira. Mas sujeira também não falta na alma humana. Se as quisermos afastar, talvez devamos antes nos limpar por dentro. No fundo, as moscas não fazem mal. Apenas mostram o que evitamos encarar. Zumbem em nossa volta como pensamentos recorrentes, como verdades inconvenientes. E, se um dia deixarem de vir, talvez não seja sinal de limpeza, mas de vazio. Porque, gostemos ou não, onde há vida, real, suja, imperfeita, há moscas.
Ultimamente tenho observado que, se há criatura que melhor encarna o espírito da humanidade, é a mosca. Observe-se o comportamento coletivo: uma mosca vê outra pousada numa feijoada esquecida ao sol e pensa: “se ela está ali, também quero”, e lá vai, sem questionar. Substitua-se “feijoada” por “opinião viral nas redes sociais” e “mosca” por “internauta indignado” e temos uma alegoria quase perfeita da sociedade atual.
Mas as moscas também têm um dom especial para a ubiquidade. Estão na cozinha, no banheiro, no parlamento, nos reality shows e até nas universidades. Falam alto, interrompem, batem asas como se estivessem a fazer algo importante, mas no fundo apenas fazem barulho.
Quando confrontados com problemas globais — clima, economia, ética — também nós preferimos bater asas desesperadamente até o próximo noticiário, empurrar o drama para debaixo do tapete.
Não sejamos injustos com as moscas. Ao contrário de nós, nunca destruíram ecossistemas em nome do progresso, nem criaram impostos sobre o próprio oxigénio. Vivem o presente com intensidade.
No fundo, talvez sejamos apenas “moscas” com diplomas, smartphones e crises existenciais, zumbindo pelas redes, saltando de ideia em ideia, pousando onde não devemos, orgulhosos da nossa capacidade de raciocinar, enquanto batemos a cabeça, vezes sem conta, no mesmo vidro.