Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor
A História oficial celebra D. Afonso Henriques como o fundador do reino, o guerreiro da independência, o herói da reconquista. Mas raramente nos fala do homem que o acompanhou até à morte e que jaz ao seu lado, no mesmo túmulo, no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Falo de D. Pedro Afonso, o seu filho mais velho, nascido da sua relação com Flamula Gomes, uma nobre da corte. Ilegítimo, sim, mas reconhecido, formado na guerra e na diplomacia, e, em muitos momentos, tratado como herdeiro natural. Nunca foi rei — mas lutou como tal. E morreu esquecido por quase todos, salvo pelo pai, que quis que repousasse consigo.
Pedro Afonso destacou-se desde cedo nos círculos do poder. Era inteligente, culto, conhecedor do direito e das práticas administrativas europeias, e cedo foi encarregado de gerir propriedades, apoiar fundações monásticas e acompanhar expedições militares. Mas o momento em que brilhou com mais fulgor foi na conquista de Silves, em 1189, onde liderou, com bravura, uma ala das forças portuguesas, em colaboração com os cruzados germânicos que então se encontravam em Lisboa. Silves era uma das mais importantes cidades muçulmanas da península, e a sua tomada foi uma das grandes vitórias da reconquista portuguesa. Pedro Afonso desempenhou um papel fulcral na operação, embora os louros oficiais tenham sido todos atribuídos ao seu meio-irmão, o rei D. Sancho I.
O conflito entre Pedro Afonso e D. Sancho não foi um detalhe de bastidores, mas um choque de legitimidades. Pedro era o mais velho e sentia-se, com razão, preparado para liderar. Sancho era o herdeiro legítimo, filho do casamento régio com D. Mafalda de Sabóia, e teve sempre a protecção das instituições eclesiásticas e diplomáticas. Pedro Afonso foi afastado da corte, recolheu-se nas suas terras no centro do país e dedicou-se à fundação de mosteiros, à administração local e à consolidação do património da Coroa.
Apesar do exílio interno a que foi condenado, Pedro Afonso nunca deixou de servir o reino. A sua proximidade à causa monástica, em particular à Ordem de Cister, contribuiu para a fundação de Alcobaça e de outros centros que marcaram profundamente a identidade medieval portuguesa. Mais do que um bastardo guerreiro, Pedro foi também um homem de visão, de cultura e de fé. Deixou descendência, incluindo o seu filho Fernão Pires, documentado em várias fontes da época, o que faz de Pedro Afonso uma peça-chave para qualquer investigação genética sobre os primeiros reis de Portugal.
E aqui está o ponto decisivo: Pedro Afonso está sepultado no mesmo túmulo de D. Afonso Henriques. Estudos arqueológicos e históricos indicam a presença de dois corpos no interior da arca tumular, hoje visitada por milhares de portugueses e turistas todos os anos. Um será o do rei fundador. O outro, tudo indica, é o de Pedro Afonso. Pai e filho, unidos em vida e em morte, mas separados pela memória histórica. Um é exaltado nos livros e nos monumentos. O outro permanece sem nome, sem estátua, sem reconhecimento.
É por isso que abrir o túmulo de D. Afonso Henriques não é um capricho académico, nem um gesto de profanação. É um acto de justiça. Um dever para com a ciência, para com a verdade e para com a nossa identidade nacional. A análise de ADN aos restos mortais — de ambos — permitiria confirmar, com rigor, a identidade do primeiro rei de Portugal e esclarecer definitivamente o que tantas vezes se disse sem prova. Mais ainda: permitiria, através da descendência documentada de Pedro Afonso, como Fernão Pires, estabelecer conexões genéticas que hoje a ciência já pode fazer com precisão e respeito.
Se países como Inglaterra, França ou Espanha não hesitaram em aplicar as técnicas da arqueogenética aos seus reis, por que continua Portugal prisioneiro do mito da inviolabilidade absoluta? Não é preferível sabermos com certeza onde repousa o nosso primeiro rei? E não será também tempo de resgatar da sombra aquele que, sendo seu filho primogénito, deu tudo pela fundação do reino e morreu fora da História — mas ao lado do pai?