Os ciclistas Ricardo Mestre, vencedor da Volta a Portugal em 2011, e Samuel Caldeira assumiram hoje em tribunal ter-se dopado depois de 2020, quando estavam na W52-FC Porto, no segundo dia de julgamento de 26 arguidos em Paços de Ferreira.

Os dois ciclistas, dos mais experientes entre os corredores que estão entre os 26 arguidos do processo, prestaram declarações no arranque do segundo dia do julgamento no pavilhão anexo ao Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, distrito do Porto.

“Assumo os factos de que sou acusado”, declarou Caldeira, que explicou que começou a dopar-se, bem como a realizar transfusões, entre o final de 2020 e 2021, tal como os acusados já ouvidos na quinta-feira, João Rodrigues e Rui Vinhas, por “sentir que havia adversários superiores”.

Ambos disseram fazê-lo de livre e espontânea vontade, incluindo-se num quadro já generalizado de doping no ciclismo português, que afirmaram existir, e com conhecimento, conivência e contacto com o diretor desportivo, Nuno Ribeiro, também ele arguido.

O algarvio utilizava a farmácia onde trabalha uma cunhada, Carina Lourenço, outra das arguidas, “e através dela conseguia os produtos”, como betametasona (diprofos), saizen e neurobion.

"Em competição, [Nuno Ribeiro] mandava uma mensagem para passar no quarto, chegava lá, pegava, e fazia no quarto”, contou.

Os ciclistas iam gerindo os valores, para passarem nos controlos antidoping, e utilizavam sacos para transfusão de sangue disponíveis no autocarro da equipa, enquanto as substâncias eram conseguidas ou por meios próprios ou no quarto de Nuno Ribeiro, além de um outro quarto ‘fantasma’, como identificou Ricardo Mestre, nas provas mais importantes.

Questionado pelo procurador do Ministério Público, Caldeira confirmou a entrega em pessoa de betametasona por Nuno Ribeiro, “que terá sido fora de prova”, e em competição “é possível” que tenha acontecido.

“As coisas [para o doping] não estavam à disposição, começaram a ficar à disposição. (...) O Nuno dizia ‘se quiseres, passa no quarto, está ali’”, revelou.

Mestre, por seu lado, confirmou ter-se dopado para se manter a par do restante pelotão nacional, além de realizar transfusões de sangue, comprando produtos pela Internet ou na farmácia.

“O doping é um sistema regular no ciclismo, onde nos adaptamos para conseguirmos atingir o nível que se pretende para chegar ao topo”, declarou Ricardo Mestre.

O vencedor da Volta2011 assumiu também os factos e disse que começou a dopar-se “mais assiduamente a partir de 2020”, mas recusou, mais tarde, responder a perguntas sobre o período anterior à investigação.

“Estava preparado, recebia mensagem para ir ao quarto, com o número do quarto”, contou, sobre o funcionamento em competição quanto a vitaminas injetáveis, explicando depois que era Nuno Ribeiro quem lhe comunicava a disponibilidade.

Os valores biológicos eram transmitidos ao diretor desportivo, e o ciclista confirmou que, em 2020, pediu a este que lhe fizesse chegar dinheiro para pagar uma compra de produtos, e outras ocasiões em que este lhe diz o que administrar.

“Mais que uma vez” recebeu dinheiro por estas compras, tendo confirmado que sabia “dos mais próximos” corredores quem se dopava, até porque chegou a comunicar valores de um outro ciclista ao diretor.

Como João Rodrigues no dia anterior, também este ciclista referiu ter tido receio de tomar a mais e confessou nem sempre seguir essa recomendação, tomando menos por vezes, além de alinhar com Caldeira na noção de que o doping “é mais ou menos comum, principalmente no pelotão português”.

Essa “regra” foi um dos fatores para decidir dopar-se, referiu, um ato que o deixou “envergonhado e arrependido”, e “visto como batoteiro” em Tavira.

Para a tarde estão programadas as declarações de outros três arguidos, os ciclistas Ricardo Vilela, Daniel Mestre e Daniel Freitas, bem como do presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), Manuel Brito.

A ADoP sancionou os ciclistas presentes, à exceção de Jorge Magalhães, cujo processo ainda decorre na instância desportiva. Todos cumprem sanções por dopagem, com sete deles - Rodrigues, Vinhas, Ricardo e Daniel Mestre, Caldeira, Neves e Vilela – com pena reduzida por terem reconhecido a culpa.

No julgamento que arrancou quinta-feira, todos os 26 arguidos respondem pelo crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, mas apenas 14 deles respondem pelo de administração de substância e métodos proibidos.

 

Lusa