Em princípio, um filho não pode ser deserdado, mas há exceções à lei. Explicamos tudo com fundamento jurídico.

Embora não seja usual, alguns pais querem deserdar os filhos. Normalmente, essa decisão nasce de graves problemas familiares, uma vez que vai, em princípio, contra toda a lógica. Mas é mesmo possível fazê-lo? O que diz a lei portuguesa sobre isso? Pode-se mesmo tirar a herança a um filho? Explicamos com a ajuda de especialistas legais.

Começamos já por confirmar que sim, é possível deserdar um/a filho/a à luz da lei portuguesa. No entanto, as situações que o permitem são absolutamente excecionais, segundo esclarece a Teixeira Advogados & Associados*, neste artigo preparado para o idealista/news.

Herdeiros legitimários: o que significa 

Antes de mais, para que melhor se compreenda a questão jurídica que trazemos, é essencial falar da legítima, que é, nos termos do artigo 2156.º do Código Civil, a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários.

Ora, deste preceito legal, desde logo, se afere que, independentemente do facto de alguém fazer um testamento mediante o qual deixe como herdeiros quem bem entender, existe uma parte da sua herança da qual não pode dispor - a legítima -, que pertence aos herdeiros legitimários nos termos da lei.

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Os herdeiros legitimários encontram-se enumerados taxativamente no artigo 2157.º do Código Civil, sendo herdeiros legitimários, e ao que interessa agora para o nosso artigo, nomeadamente os filhos.

Assim, pela leitura conjugada destes dois artigos do Código Civil, conclui-se que a regra na lei portuguesa é a da impossibilidade da negação da legítima aos filhos. No entanto, existem exceções a esta regra:

  1. o instituto jurídico da deserdação;
  2. e o instituto jurídico da incapacidade por indignidade.

Deserdar filhos: em que casos excecionais é possível fazê-lo?

1. Instituto jurídico da deserdação

O instituto da deserdação encontra-se previsto no artigo 2166.º do Código Civil, que prescreve como causas excecionais de deserdação dos herdeiros legitimários as seguintes:

  • se o herdeiro tiver sido condenado por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão, ou do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adotante ou adotado, desde que ao crime corresponda pena superior a seis meses de prisão;
  • se o herdeiro tiver sido condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas;
  • se o herdeiro sem justa causa, tiver recusado ao autor da sucessão ou ao seu cônjuge os devidos alimentos.

É importante realçar que para que aconteça efetivamente a deserdação de um filho ou de qualquer outro herdeiro legitimário por um dos motivos referidos acima, não basta que ele ocorra para que a deserdação se verifique automaticamente -, é necessário que o autor da sucessão declare expressamente mediante testamento a vontade de deserdar o filho e a causa da mesma.

  • O que um filho deserdado pode fazer?

Por sua vez, o filho que tenha sido deserdado poderá, ao abrigo do artigo 2167.º do Código Civil, no prazo de dois anos após a abertura do testamento, propor uma ação com vista a demonstrar a inexistência da causa invocada para a sua deserdação e assim, manter o seu direito à legítima.

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2. Instituto jurídico da incapacidade por indignidade

Já no que concerne ao instituto da incapacidade por indignidade, que se traduz na falta de capacidade para suceder numa herança (ou seja, aquele que, de acordo com a lei - ou o testamento - seria herdeiro (ou legatário), não o poderá ser por indignidade), este encontra-se regulado no artigo 2034.º e seguintes do Código Civil.

Nos termos desta norma, verifica-se a perda de capacidade sucessória, por indignidade, nos seguintes casos:

  1. se o herdeiro for condenado, seja como autor, seja como cúmplice, do crime de homicídio doloso (mesmo que não consumado) do autor da sucessão, do cônjuge deste, de seu descendente, ascendente, adotante ou adotado;
  2. se o herdeiro for condenado, por denúncia caluniosa ou por falso testemunho, também contra o autor da sucessão, o seu cônjuge, seu descendente, ascendente, adotante ou adotado, relativamente a crime a que corresponda uma pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a natureza do crime;
  3. se o herdeiro através de dolo ou coação, tenha induzido o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar testamento ou que tenha impedido o autor da sucessão de fazer, revogar ou modificar testamento;
  4. se o herdeiro de forma dolosa tenha subtraído, ocultado, inutilizado, falsificado ou suprimido testamento, seja antes, seja depois da morte do autor da sucessão ou se tenha aproveitado de algum destes factos.

Para que alguém perca a capacidade sucessória por indignidade terá sempre de existir uma sentença que decrete a referida indignidade sucessória, a qual deverá ser proferida em ação a intentar pelos restantes herdeiros ou, se não os houver, pelo Ministério Público. A indignidade sucessória poderá, também, ser decretada na sentença penal que condene pela prática do crime que determina a indignidade.

Por último, salienta-se que, ainda assim, i.e. mesmo que o herdeiro já tenha sido judicialmente declarado indigno, readquire a capacidade sucessória, se o autor da sucessão expressamente o reabilitar em testamento ou escritura pública, ou caso o contemple em testamento quando o testador já conhecia a causa da indignidade, mas, neste último caso, só e apenas dentro dos limites da disposição testamentária.

*Mara Godinho, advogada, Teixeira Advogados & Associado