Em entrevista ao nosso jornal, afirma que «não quer voltar à política» mas comenta alguns dos assuntos da nossa atualidade, como a Guerra na Ucrânia, a inflação, a saúde, o turismo e a seca.

José Mendes Bota teve um percurso afirmado na política. Foi Presidente da Câmara Municipal de Loulé, parlamentar e diplomata da União Europeia. Durante a sua carreira, exerceu ainda alguns cargos nos setores da igualdade de géneros, desenvolvimento sustentável, pela regionalização, violência contra as mulheres e tráfico de seres humanos. Em entrevista ao nosso jornal, afirma que «não quer voltar à política», mas comenta alguns dos assuntos da nossa atualidade, como a Guerra na Ucrânia, a inflação, a saúde, o turismo e a seca.

 

A Voz do Algarve (V.A.) - Apesar de estar retirado da vida ativa política, é uma pessoa que continua a acompanhar de perto a atualidade. A Guerra na Ucrânia afeta toda a Europa. Que consequências está a ter/terá este conflito para Portugal e, em particular, para o Algarve?

Mendes Bota (M.B.) - As consequências estão à vista de todos e sentimo-las diariamente na carteira quando vamos ao supermercado, quando pagamos a água, a luz e o gás, entre outras coisas. É preciso que se diga que nada disto aconteceu somente devido à Guerra na Ucrânia. A tendência inflacionária já se vinha a fazer sentir, mas é evidente que a Guerra acelerou esse processo. Não posso prever o desfecho deste conflito, mas devo confessar que, para mim, foi uma surpresa ver a Rússia tomar a iniciativa de um ataque. Numa pensei presenciar a audácia e a falta de respeito por todos os mecanismos que existem a nível internacional em termos de legislação, relações internacionais e compromissos através de convenções. O Putin deitou isso abaixo e as consequências são imprevisíveis, tanto para a Rússia, como para a Ucrânia- obviamente, sem esquecer toda a Europa e o Mundo, porque acredito que todos vão sentir os efeitos nefastos desta Guerra. Todas as Guerras são más e é preciso que se perceba que os culpados e os principais responsáveis pelas mortes estão do mesmo lado – não vale a pena termos a ilusão de que os “bons” estão de um lado e os “maus” do outro. Neste caso, eu não tenho dúvidas nenhumas de que o “agressor” é a Rússia e que aquilo que fez e está a fazer é uma coisa absolutamente indesculpável.

O Algarve tem os efeitos “genéricos” deste conflito. Estamos ainda a passar pela fase pós-pandemia, em que o turismo internacional recuperou bastante e em que se considera que esta região é segura – apesar de, hoje em dia, dentro da estratégia geo-mundial, ninguém está seguro. Contudo, numa escala 

 

de “menos seguro para mais seguro”, estamos dentro dos locais mais aprazíveis, onde se podem passar umas férias seguras. A questão é que sofreremos, porque se há setor económico sensível a questões de segurança internacional e a questões que afetem os transportes (neste caso de energia e escalada de preços para as viagens), é o Algarve. Temos uma quase monodependência ao turismo, que nos deixa numa situação muito complicada. Não temos uma indústria que aguente algumas fragilidades turísticas e, de um momento para o outro, podemos ficar “a zeros”.

Não é possível prever quando é que isto vai acabar e o setor mais produtivo é do armamento, que vive e se alimenta de conflitos e guerras. Diria que se há setor a ganhar fortunas colossais é do armamento de guerra. Esse setor, infelizmente, ainda tem um grande domínio sobre as lideranças e as elites políticas de alguns países muito fortes, como a China, Rússia, as EUA e o Reino Unido, que são grandes potências de produção de armamento, onde muita gente ganha dinheiro. Para além disso, influenciam as lideranças, e não há um esforço sério para se conseguir a paz, porque há um setor que está a funcionar muito bem. Estou cético com o futuro, mas estamos todos.

 

V.A. – Recentemente, o Governo anunciou algumas medidas para travar a inflação, que se faz sentir devido à Guerra na Ucrânia. Entre elas, o apoio aos pensionistas. Será esta e outras medidas suficientes para os tempos de incerteza que vivemos?

M.B. - Temos de ter noção que Portugal atingiu um nível de endividamento externo, quer público, quer privado, que é absolutamente incomportável. E ainda é mais incomportável, quando estamos numa fase de subida das taxas de juro, quer do Banco Central Europeu, quer em geral do sistema bancário e financeiro. Isso tem uma repercussão enorme nas famílias e no investimento. Portanto, acho que, neste momento, temos que investir e ajudar as famílias que estão a passar mal nesta crise, mas também temos de ter a noção de que o país tem recursos limitados. Não podemos abrir a “caixa de pandora” como se não houvesse amanhã. Como se viu, pelas reações que houve ao anúncio do Primeiro-Ministro, quer da extrema esquerda, quer da extrema direita, todos condenaram sobretudo aquilo que se passa com os aumentos das pensões – em que se está a dar com uma mão e a tirar com a outra no futuro. E o que se tira é muito mais, porque implica uma alteração estrutural da forma de cálculo da atualização automática das pensões para o resto da vida. Sabendo nós que a pensão média por velhice em Portugal é muito baixa, estamos a condicionar o futuro de muitos milhões de portugueses enquanto forem vivos. Isso não é justo e não é próprio de uma sociedade que procura dar uma vida condigna a todos os cidadãos. Depois, outra questão, é a questão do IVA sobre a eletricidade. Quando se diz que se reduze o IVA para a taxa mínima apenas para determinado tipo de consumidor, até 100 kWh/hora, diria que é quem tem apenas uma lâmpada em casa. Isso foi uma tentativa de enganar os cidadãos, que não se deixaram enganar.

Não vou discutir se em vez de se fazerem 2 mil milhões se fazerem 5 mil milhões. O que eu digo é que há opções neste país que foram ruinosas para Portugal e que, se não tivessem sido tomadas, teriam libertado muitos meios financeiros que agora, em tempos de emergência, teriam sido muito úteis. O que se passa com a TAP, é absolutamente espantosa: uma empresa que se tinha conseguido privatizar e retirar um encargo do Estado, voltou atrás devido ao Governo liderado por António Costa, que entendeu reverter a medida, indemnizar os privados que lá estavam e transferiu para o setor Estado um prejuízo que ronda os 4 mil milhões de euros. Esse dinheiro faria muita falta agora. Mas existem outras decisões que tiveram muito impacto, como reverter o horário semanal de trabalho para 35 horas, que obrigou vários setores a empregar muita mais gente para colmatar períodos que já estavam cobertos. O que contestamos, são as medidas que são apresentadas como se fossem beneficiar os cidadãos, mas que chegamos à conclusão de que fazem precisamente o contrário.

 

V.A. – Falando da saúde em Portugal. O que pensa da demissão da Ministra da Saúde, Marta Temido e da situação vivida nas urgências?

M.B. - Devo confessar que não tenho pela ex Ministra da Saúde qualquer simpatia, nunca o tive, sobretudo pela forma algo arrogante, ideológica e má como ela procurou gerir o SNS - Serviço Nacional de Saúde. Aquilo que se atribui como um grande feito de Marta Temido, a gestão da pandemia da covid-19, não foi um grande feito… Deixaram-se milhões de portugueses sem os serviços médicos necessários, porque estava tudo focado na pandemia e todas as outras doenças foram esquecidas. Isso é um balanço que está por fazer. Por outro lado, a vacinação teve de ser coordenada pelo Almirante Gouveia e Melo, porque o SNS não foi capaz de o fazer convenientemente. Não sei porque é que algumas pessoas dão tanto mérito à Ex-Ministra. Durante o tempo em que esteve à frente do SNS, não restruturou nada e andou a ativar planos de emergência sempre que existia um problema. Acho que ela já se demitiu tarde.

 

V.A. – O Hospital Central do Algarve, continua a ser apenas uma realidade no papel. De quem é a culpa?

M.B. - Todos os partidos prometeram o Hospital Central do Algarve e nenhum cumpriu. É impensável a forma como tantos Hospitais no país ultrapassaram barreiras e foram concretizados vários projetos e o Hospital Central do Algarve, que chegou a ter o lugar cimeiro da lista, transformou-se numa “lenda”. Não há uma força efetiva por parte de autarquias e autarcas, que neste momento acolhem as unidades hospitalares de Faro e Portimão. Afirmo que o Hospital de Faro já teve o seu papel de importância, mas hoje não está na localização adequada: tem acessos difíceis, não tem estacionamentos e tem instalações que estão constantemente a precisar de reparos. Isto tudo, quando temos um local público e terreno para esta construção. Não há melhor local para o Hospital Central do que o Parque das Cidades. Contudo, há mentalidades pequenas e bairristas, que querem apenas manter o Hospital no centro da “sua” cidade – mas isso não é servir bem a sua população. Todos os partidos deveriam ter vergonha na cara e eu próprio dei a cara por isso, mas não consegui com que o meu partido, enquanto esteve no Governo, tornasse este assunto uma prioridade. Mas a verdade é que o meu partido esteve no Governo em momentos de grande crise orçamental. Ao longo destas décadas, já houve épocas em que seria possível construir o Hospital se houvesse vontade política.

 

V.A. - Segundo as últimas estimativas, o turismo do Algarve irá bater os números recorde de dormidas até agora, ultrapassando o melhor ano, de 2019. Aparentemente, está tudo bem, mas a falta de trabalhadores, continua a ser uma realidade. Que outros problemas daí advêm?

M.B. – O problema que a falta de pessoal nas unidades hoteleiras, está a fazer com que exista uma importação massiva de trabalhadores de outros países, que tem assegurado muitas empresas, é preciso que se diga. Contudo, há um choque sociocultural, porque essas pessoas não têm os mesmos costumes que nós, nem a mesma filosofia de vida. Diria que 90% das pessoas que servem num restaurante não são portuguesas, muito menos algarvias. Assim como em centros comerciais, 70% a 80% dos trabalhadores, não são portugueses. Isto leva-nos até outra questão: se temos pessoas de fora a trabalhar cá, com salários baixos, como é que é possível pagar uma casa ou um quarto? A habitação é um dos problemas do Algarve. Não há uma política de habitação, apesar das pequenas tentativas de algumas autarquias. Daí, advém as casas pré-fabricadas, a maior parte ilegais, que são colocadas em qualquer sítio e sem infraestruturas. E depois há pessoas que colocam um projeto na Câmara e têm de esperar vários anos por uma decisão. As casas pré-fabricadas são muito menos burocráticas e montam-se de um dia para outro. Depois faz-se um furo supostamente para a agricultura e depois o esgoto faz de fossa cética. E voltamos aqui ao Algarve de há 40 anos. Estamos numa fase de caos urbanístico. Isto tem a ver com a falta de uma política de habitação.

V.A. – Pegando na sua última frase, de “caos urbanístico”, o que poderia ser feito no Algarve para minimizar a problemática da seca? Mais barragens ou dessalinizadoras?

M.B. - O primeiro político em Portugal a defender as dessalinizadoras fui eu. Fiz conferências, vídeos e ações de sensibilização e ninguém deu a devida importância. A precipitação no Algarve é cada vez menos e este é um problema que tem de ser atacado de frente. Hoje, já se fala numa numa dessalinizadora, algo que noutros locais do mundo já se utiliza há 20 anos. É verdade que esta técnica tem as suas desvantagens, mas não podemos morrer de sede, nem deixar de regar a agricultura.

 

V.A. – Por fim, como compara a seca de há 40 anos com a atual?

M.B. - Estamos melhor preparados hoje em dia para enfrentar uma situação de seca e temos outros recursos. Anteriormente, sabíamos pouco sobre esta temática e andávamos a furar locais de forma aleatória. Hoje temos um conhecimento científico maior dos nossos recursos subterrâneos e há furos que podem ser reativados em caso de emergência. Contudo, hoje em dia há um grande desperdício de água, começando nas redes que existem, que perdem muita água em tubagens rotas. Depois, a juntar a isto, os hábitos de consumo das pessoas: muita gente não tem noção de como pode poupar água. Tem de existir uma maior campanha de sensibilização.

 

Por: Nathalie Dias