Diretor do Estabelecimento Prisional de Silves

A origem de grandes projetos muitas vezes surge de uma simples conversa, e foi assim que a parceria entre a ARA e o Estabelecimento Prisional de Silves ganhou forma. João Ferreira, da ARA, identificou uma oportunidade de colaboração e entrou em contacto, iniciando um projeto que transformaria não só as condições dos animais, mas também a vida dos reclusos envolvidos.

Nesta entrevista, exploramos a história desta parceria, que teve início em 2008 e evoluiu para um exemplo de cooperação. Graças a esta colaboração, foram construídos abrigos para animais, enquanto os reclusos adquiriram habilidades valiosas e receberam apoio essencial em forma de donativos e vestuário. A união entre associações, instituições e voluntários demonstrou a importância do trabalho em conjunto para atingir objetivos comuns e criar impacto social positivo.

Acompanhe esta entrevista para conhecer os detalhes e o impacto gerado por esta colaboração, em benefício dos animais e das comunidades envolvidas.

 

A Voz do Algarve - Como surgiu a parceria entre o vosso estabelecimento e a ARA e de que forma beneficiou o projeto de abrigos para animais?

Ricardo Torrão - A ideia inicial partiu da ARA, quando o João Ferreira percebeu que algumas associações precisavam de apoio e nos contactou. Naquela altura, estávamos sobrecarregados com trabalho e colocámos os pedidos numa lista de espera. Com o tempo, devido à conjuntura económica, as associações começaram a procurar-nos com mais frequência e percebemos que essa colaboração seria benéfica, tanto para os reclusos, que ganham experiência e habilidades, quanto para a ARA e as associações. O projeto de abrigos para animais foi o mais significativo, não só pela construção dos abrigos, mas também pelo apoio que a ARA deu aos três reclusos que colaboraram, oferecendo donativos e roupas. Esses três reclusos não são sempre os mesmos; eles vão sendo libertados e outros vão-se juntado ao projeto, permitindo que novos reclusos aprendam com os que já têm experiência.

Esta parceria, que começou em 2008, envolveu ainda veterinários, câmaras municipais e outras associações, e fortaleceu o sentido de cooperação entre todos.

 

V.A - Como conseguem os materiais para elaborar os abrigos de animais e qual a diferença que a colaboração com a ARA trouxe em termos de profissionalismo e eficiência?

R.T - A responsabilidade pelos materiais recai sobre a associação, enquanto nós oferecemos a mão de obra necessária para os projetos. A Inframoura tambem tem sido uma parceira fundamental, fornecendo todo o material que utilizamos, como paletes recicláveis, contraplacados e outros tipos de madeira de qualidade superior, além de materiais adicionais como parafusos, tintas e silicones. Inicialmente, enfrentámos algumas dificuldades para conseguir paletes, mas, desde que a ARA estabeleceu esta parceria que envolve três partes, conseguimos um fluxo constante de materiais.

A colaboração com a ARA fez uma diferença significativa em termos de profissionalismo e eficiência. Com a ARA, o processo tornou-se muito mais estruturado e fluído, permitindo uma comunicação eficaz entre as partes. Por exemplo, eu podia enviar um e-mail ao João Ferreira e ele rapidamente respondia e organizava tudo o que precisávamos, garantindo que os materiais chegassem rapidamente e sem grandes obstáculos. Isso contrasta muito com experiências anteriores, em que muitas vezes tínhamos de esperar que os próprios voluntários conseguissem dinheiro ou arranjassem os materiais necessários. Houve situações em que esperei até um ano e meio por materiais, devido a discussões internas entre o veterinário municipal e o vereador de uma Câmara Municipal, o que foi extremamente frustrante.

Com a ARA, o profissionalismo foi evidente desde o início, facilitando o progresso dos nossos projetos de forma mais célere e organizada. Além disso, a colaboração não só nos forneceu materiais de qualidade, mas também envolveu a participação de outras associações e voluntários, que, em algumas ocasiões, adquiriram materiais com os seus próprios recursos, o que demonstra a importância de uma rede de apoio e cooperação entre todas as partes envolvidas. Essa mudança para um sistema mais organizado e eficiente teve um grande impacto, melhorando significativamente o nosso trabalho.

 

V.A - De que forma o trabalho dos reclusos na construção dos abrigos para animais contribuiu para o desenvolvimento das suas competências?

R.T - O trabalho dos reclusos na construção dos abrigos para animais, especialmente na adaptação dos T12 para T10, foi extremamente benéfico para o desenvolvimento das suas competências. A ARA tinha necessidades específicas e a colaboração foi essencial para atendê-las. Além disso, temos a oficina Técnica da Delta, onde reparamos máquinas de café da marca Delta para o Algarve, um projeto que o Sr. Comendador Rui Nabeiro transferiu para o nosso estabelecimento. Tanto a construção dos abrigos quanto o trabalho na oficina ajudam a desenvolver as competências dos reclusos, muitos dos quais nunca tinham tido contato com madeira ou carpintaria. Essas atividades proporcionam-lhes novas habilidades, promovendo a reintegração e a valorização pessoal. Temos um recluso que era carpinteiro de profissão e que, em breve, será libertado. Ele tem estado a ensinar outros reclusos a trabalhar com madeira, desenvolvendo as suas habilidades. Muitos reclusos chegam apenas com uns calções, uma t-shirt e chinelos.

Esta colaboração tem permitido garantir um mínimo de dignidade a essas pessoas. Assim como a ARA se preocupa com os animais, nós temos a responsabilidade de cuidar dos reclusos, assegurando as condições necessárias para a sua dignidade e reintegração na sociedade.

 

V.A - Quantas gatis já foram construídos para a ARA e como é feita a sua distribuição nas várias freguesias de Loulé?

R.T - Até agora, já construímos um total de 40 abrigos, além de 20 unidades T5 e T10. Desde o ano dos incêndios na Serra de Monchique, conseguimos realizar cerca de 630 unidades, já que os abrigos maiores são contabilizados como uma única unidade, mesmo que consigam albergar mais animais. O projeto abrange Loulé, que possui nove juntas de freguesia, e damos prioridade às colónias que mais precisam de abrigos, especialmente aquelas com maior número de animais ou que estão em zonas de risco.

As primeiras juntas que nos deram autorização foram a Junta de Quarteira e a Junta de Almancil, onde implementámos os primeiros abrigos. Temos abrigos em várias ruas, como a Rua da Alemanha, Rua da Grécia e Rua do Corvo, e sinalizamos as colónias em cada freguesia. O nosso foco principal é a esterilização de todos os gatos, e também registramos os cuidadores dessas colónias, que são, na sua maioria, pessoas que cuidam dos animais há anos.

Quando pedimos autorização às juntas de freguesia para colocar os abrigos, normalmente elas enviam um engenheiro ou alguém para verificar se o local é adequado. A Inframoura tem realizado um trabalho notável em Quarteira e Vilamoura, incluindo a colocação de vedações e a criação de um espaço seguro ao redor dos abrigos. Além disso, temos sinaléticas que informam a população sobre o projeto C-E-D, que significa “Capturar, Esterilizar e Devolver. Este projeto é protegido pela lei, garantindo que os gatos que nasceram nas ruas continuem a viver lá, recebendo os cuidados necessários.

Em alguns casos, como em escolas, conseguimos envolver as crianças, que ajudaram a personalizar os abrigos e são responsáveis por alimentar os gatos diariamente. Esta abordagem educativa proporciona uma experiência muito rica para todos os envolvidos, promovendo a conscientização sobre a importância do cuidado e da proteção dos animais.

 

V.A - Acredita que este tipo de serviço com os reclusos contribui para a sua reintegração social e laboral?

R.T - Sem dúvida, este serviço tem um impacto positivo na reintegração dos reclusos. Muitos deles nunca tiveram qualquer experiência laboral com madeiras antes de se envolverem neste projeto, e o trabalho manual, como a carpintaria, é uma profissão em extinção. Ter a oportunidade de aprender essas competências é uma mais-valia para eles. Vários reclusos que saíram da prisão conseguiram empregos em carpintarias, algo que nunca imaginaram antes de entrarem.

Além de adquirir novas competências, este trabalho permite que os reclusos retribuam à sociedade, ajudando associações e a causa animal. É interessante notar que não tive dificuldade em convencê-los a participar; muitos preferem estar ocupados, pois isso faz com que o tempo passe mais rápido. Alguns expressaram até o desejo de ter visitas dos seus animais de estimação, algo que, infelizmente, não é permitido pela lei em Portugal, ao contrário de outros sistemas prisionais.

Quanto à formação, não temos um programa específico na área da carpintaria, mas os reclusos aprendem uns com os outros. Temos a sorte de contar com a experiência de uma pessoa que foi carpinteiro por mais de 30 anos, o que tem contribuído para a qualidade do trabalho. No início, havia reclusos autodidatas ou que tinham alguma experiência em construção, mas agora o conhecimento é transmitido entre eles, o que torna o processo de aprendizagem mais eficaz. Essa dinâmica de colaboração beneficia a todos, promovendo um ambiente de aprendizado e crescimento mútuo.

Neste momento, temos 79 reclusos, dos quais 85% estão empregados e recebem salário. O nosso estabelecimento prisional tem parcerias com algumas empresas, que não só oferecem oportunidades de trabalho, mas também fazem donativos em dinheiro para ajudar os reclusos com roupas e outros bens.

 

V.A - Que tipo de apoio é oferecido aos reclusos após a libertação e como isso contribui para a sua reintegração na sociedade?

R.T - Após a libertação, oferecemos apoio contínuo através de várias parcerias, como a IPSS "O Companheiro", que ajuda reclusos a encontrar habitação e a reintegrar-se na sociedade. Recentemente, em colaboração com a Câmara de Lagoa, conseguiram arranjar quartos para reclusos sem moradia.

No Algarve, a situação é positiva; apenas quem não quer trabalhar permanece sem emprego. Conheço empresários, como o Sr. Serafim do Norte, que está sempre à procura de trabalhadores e já ajudou vários reclusos a encontrar emprego. Garantir emprego e habitação logo após a saída da prisão é crucial para evitar reincidências. Quando identificamos um recluso sem abrigo, trabalhamos para encontrar um empregador disposto a oferecer uma oportunidade.

No entanto, lidamos com situações complicadas, como reclusos que, mesmo empregados, enfrentam comportamentos aditivos que os levam a gastar os seus salários de forma imprudente. Outros dependem do Rendimento Social de Inserção (RSI), e quando isso acaba, enfrentam sérios problemas financeiros. É um ciclo difícil, mas estamos empenhados em encontrar soluções para garantir que todos tenham uma oportunidade real de reintegração na sociedade.

 

V.A - De forma resumida como avalia o impacto da colaboração entre o estabelecimento prisional e a ARA na capacitação e reintegração dos reclusos?

R.T - A parceria entre o estabelecimento prisional e a ARA é uma colaboração valiosa que visa promover a reintegração social e laboral de reclusos através da construção de abrigos para animais. Desde 2008, esta parceria tem permitido que reclusos adquiram novas competências em carpintaria e trabalho manual, ao mesmo tempo que contribuem para causas sociais, como o cuidado de animais abandonados. A ARA fornece materiais essenciais e apoio logístico, enquanto os reclusos, em contrapartida, oferecem mão de obra. Essa colaboração tem gerado um impacto positivo, não apenas na vida dos reclusos, que aprendem e se valorizam, mas também nas comunidades locais que se beneficiam dos abrigos construídos. Através do trabalho conjunto, a parceria reforça a importância da cooperação entre instituições para o sucesso de projetos sociais e a dignidade dos indivíduos.

 

Nathalie Dias