Guardo na memória uma fotografia datada. Faz-me revisitar o dia 25 de Abril de 1975, um ano depois da muito esperada e festejada revolução de abril. Tinha seis anos de idade. As crianças estão sentadas na praça da vila.
Trajam uns bibes quadriculados com as iniciais do nome de cada uma, gravados à linha. A cada uma tinha sido entregue uma folha de papel branco e pincéis com tintas de várias cores.
Ainda sinto o cheiro do verde, do azul, do vermelho, do amarelo, do laranja, do rosa, juntamente com o cheiro das laranjeiras em flor e dos cravos vermelhos dados a cada uma.
É tão belo e tão bom ser criança. Deixar que nos habitem jardins. Ser livre para dizer palavras que acrescentam e não ferem, não matam. Não viver amordaçado. Era um dia soalheiro, que a frescura da pedra abraçava.
E lembro a música, ainda hoje, como o mar dentro dos búzios a ecoar no pensamento: “Uma gaivota voava, voava, asas de vento, coração de mar. Como ela, somos livres, somos livres de voar”. Não tinha ainda a consciência plena da liberdade e da cidadania, mas sabia da escuridão que vem pelo medo de as não ter.
Vivi a alegria e saboreei-a semeada nos rostos da família pelos frutos da revolução, partilhada aos almoços de Domingo.
Desse tempo guardei apenas esta palavra: liberdade! E lembro um dia em que pensei fosse definitivamente roubada por uns homens maus. As portas fechavam-se à pressa, com força. Alguma correria nas ruas.
Lembro-me da confusão em casa, das muitas palavras ditas entre os avós e os pais e o recado do pai: silêncio! Ninguém faz barulho. E a mãe a sussurrar: andam aí uns homens em busca do marido da professora. Diz-se que fazem parte da Pide. E ouvia baterem com força às portas. Estavam no meu prédio.
E nós, eu e a minha irmã mais nova, no quarto, em silêncio: a Pide é má! E agora? Tapávamos os ouvidos com medo dos homens maus, para não os escutarmos e pensar assim, que não nos viessem a fazer mal.
Agora sei, que não venceram. Não mataram a liberdade. Mas alguns foram mortos por causa dela. Ainda hoje é com viva emoção, que escuto sempre essa canção: “Grândola, Vila Morena/ Terra da fraternidade/ O povo é quem mais ordena/ Dentro de ti, ó cidade (…) Em cada esquina, um amigo/ Em cada rosto, igualdade/ Grândola, Vila Morena/ Terra da fraternidade”. Assim o aprendíamos na creche, que as crianças são inocentes, dizem tudo sem maldade, dizem verdade, não lutam, não fazem guerra. Esta era a educação dada com amor e lucidez. O seu combate é o amor, a amizade, a fraternidade, a igualdade e a paz.
O presente e o futuro será como a vida das crianças, como essas crianças livres, puras, sorridentes, felizes, que lembro a pintarem sentadas comigo na praça, flores, cravos, bonecos. E eu virado para a Igreja que pontifica o espaço da praça, imponente, pombalina, a desenhar a casa de um Deus a quem também alguns agradeciam a liberdade.
Esta fotografia agrafava sem o saber o meu futuro, o meu sonho, o fruto da liberdade em mim. Hoje, ao testemunhar esse dia escrevi o que considero urgente e necessário para que se cumpra abril: Libertemos a liberdade cantada em primavera!