O primeiro-ministro apanhou o país de surpresa esta segunda-feira, 2 de outubro, ao anunciar que em 2024 pretende acabar com a taxa especial para novos residentes não habituais (RNH). Depois de conseguir ver promulgado o polémico Mais Habitação, no âmbito da preparação para o Orçamento Estado para 2024 e no rescaldo da onda de manifestações nacionais devido à crise habitacional do país, do passado sábado, António Costa veio dizer que o Governo decidiu não prolongar “uma medida de injustiça fiscal, que já não se justifica e que é uma forma enviesada de inflacionar o mercado de habitação, que atingiu preços insustentáveis”. Sem dar mais explicações, o líder do Executivo socialista deixou várias dúvidas no ar - o suficiente para agitar as águas no setor. De investidores a promotores: o mercado imobiliário reagiu de imediato, dando sinais de preocupação quanto a mais uma medida do Governo de maioria, que pode comprometer a saúde do setor, sem resolver o problema do acesso à habitação.
O próprio governador do Banco de Portugal (BdP) também já veio pronunciar-se sobre as palavras do primeiro-ministro, referindo que não está “completamente” convencido de que programas como o dos residentes não habituais seja o problema do mercado habitacional. Para Mário Centeno, ex-ministro das Finanças de António Costa e ex-presidente do Eurogrupo, o fim do regime é uma questão política.
O Estatuto de Residente Não Habitual (RNH) foi criado em 2009. Trata-se de um regime especial que oferece redução do Imposto sobre Rendimentos das Pessoas Singulares (IRS), durante 10 anos, a novos residentes estrangeiros (de qualquer nacionalidade) e a cidadãos portugueses que tenham estado emigrados mais de 5 anos, “tendo em vista atrair para Portugal profissionais não residentes qualificados em atividades de elevado valor acrescentado ou da propriedade intelectual, industrial ou know-how, bem como beneficiários de pensões obtidas no estrangeiro”.
RNH acaba em 2024, mas mantém-se para quem já tiver benefício
“Em 2024 vai acabar a taxação especial para os residentes não habituais. Quem a tem, manterá”, afirmou o primeiro-ministro em entrevista a TVI/CNN Portugal, numa alusão aos estrangeiros residentes em Portugal que já estão a ter este benefício fiscal. De acordo com o líder do executivo socialista, “a medida dos residentes habituais já cumpriu a sua função e, por isso, não faz sentido manter uma taxação para os residentes não habituais”.
“Já houve uma altura em que foi necessária. Essa medida fez sentido. Nos primeiros dez anos, 59% das pessoas que tinham beneficiado continuaram em Portugal, apesar de o regime ter acabado. Mas neste momento não faz mais sentido”, reforçou António Costa.
O primeiro-ministro disse que o regime é “uma forma enviesada” de contribuir para a especulação imobiliária, mas não adiantou mais detalhes sobre o que aí vem. Mas até ao momento é apenas uma tomada de posição política, sendo preciso ainda esperar pela proposta do Orçamento do Estado para 2024 (OE2024) para se ficar a conhecer os contornos da nova lei, segundo precisou fonte oficial do gabinete do primeiro-ministro ao Negócios.
Apesar do regime de RNH acabar a partir de 2024 - não sendo aceites mais inscrições -, quem já adquiriu esse estatuto continuará a ser tributado com a taxa especial de IRS até ao fim do prazo dos dez anos, explicou António Costa. Em termos práticos, isto quer dizer que, apesar de Costa querer promover a medida como solução imediata para os problemas da habitação, os efeitos do regime fiscal ainda se farão sentir nas contas do país por mais nove anos, uma vez que só termina em definitivo dentro de dez, em 2033. Isto porque quem aderir ao regime ainda este ano, adquire o direito a ser tributado como tal no período de 10 anos consecutivos.
Até ao final do ano passado tinham já beneficiado do regime de residentes não habituais mais de 74.000 pessoas, segundo os números recolhidos pelo Tribunal de Contas (TdC) no seu parecer à Conta Geral do Estado (CGE) de 2022. Trata-se de um aumento de cerca de 50% face aos pouco mais de 25.000 contabilizados em 2018. Já a despesa fiscal associada, segundo o referido parecer do TdC à CGE de 2022 rondou nesse ano os 1.360 milhões de euros.
Imobiliário apanhado de surpresa: setor está preocupado
O fim do benefício fiscal dos RNH apanhou o mercado de surpresa. Bruno Alves, partner da PwC, disse ao Negócios que “a notícia correu muito rapidamente” e que receberam pedidos de esclarecimento de todo o mundo sobre o que se está a passar. De acordo com o responsável, o regime “tem muito impacto, não só para as pessoas, mas também para as empresas”, sendo “muito estrutural”. “Temos muitas empresas tecnológicas em Portugal neste momento, que têm nos seus quadros muitos estrangeiros da área da tecnologia e que estão cá por causa do regime”. O anúncio “criou alguma preocupação a nível nacional como internacional e foi uma surpresa para todos nós”, salienta o especialista fiscal ao jornal.
Depois da onda de incerteza gerada pelo Mais Habitação, o mercado teme agora que as mexidas neste regime fiscal afastem investimento do país. Num comunicado enviado às redações, a que o idealista/news teve acesso, a Krest defende que o plano do Governo para acabar com o regime de RNH “levanta sérias preocupações aos investidores em Portugal”. “Embora reconheçamos as preocupações do Governo relativamente à crise de habitação nas principais cidades portuguesas e aos desafios da acessibilidade à habitação, estamos profundamente preocupados com o facto de as soluções propostas poderem agravar a situação atual”, defende a promotora belga.
“No atual panorama económico mundial, em que a concorrência pelo investimento estrangeiro é feroz, estes sinais de incerteza podem ter um impacto negativo”, acrescenta, frisando que “os investidores estrangeiros, que têm desempenhado um papel vital no desenvolvimento económico de Portugal, podem reconsiderar o fator de risco associado aos seus futuros investimentos no país”.
Outros promotores e consultores ouvidas pelo ECO, levantam as mesmas preocupações, e temem que o futuro do investimento estrangeiro em Portugal esteja em risco. Querem, por isso, que o Governo divulgue dados para conhecer o “impacto real” do regime para residentes não habituais na habitação. Hugo Santos Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), considera que “seria muito pertinente fazer uma correta avaliação desta medida”, para perceber qual a sua influência no mercado imobiliário.
Para José Cardoso Botelho, CEO da Vanguard Properties, ouvido pela mesma publicação, “o problema da habitação para a classe média pouco ou nada foi afetado pelos residentes não habituais nem, como já se viu antes, pelos vistos gold“.
“O investimento dos residentes não habituais não está de todo relacionado com a inflação dos preços da habitação. Este tipo de investidor particular pode apenas arrendar um espaço, não necessita de efetivar uma compra. Por isso, tal fator não contribui para a escalada dos preços da habitação no país”, diz Miguel Lacerda, Lisbon residential diretor da consultora Savills Portugal, também citado pelo ECO.
Mesmo alguns investidores imobiliários que concordam que o programa de residentes não habituais é injusto para os habitantes locais que suportam uma carga fiscal mais pesada dizem que o Governo não resolverá a atual crise imobiliária apenas tentando arrefecer a procura externa.
“De certa forma, aplaudo esta ideia”, disse Pedro Coelho, CEO da Square Asset Management, uma empresa gestora de investimento imobiliário em Lisboa com quase 2 mil milhões de euros em investimentos imobiliários, sobre o anúncio de Costa na noite passada. “Mas o Governo precisa de aumentar a oferta de casas disponíveis no mercado se quiser resolver a crise imobiliária e não bloquear o investimento.”, destacou o gestor nas mesmas declarações à Bloomberg.
Por: Idealista