Mais Habitação tem contribuído para gerar desconfiança e insegurança entre quem investe, dizem players do setor e aplaudem veto.
Em semana de onda de calor, a temperatura subiu no mercado imobiliário, depois de o Presidente da República ter anunciado que decidiu vetar o Mais Habitação. Para Marcelo Rebelo de Sousa, trata-se de um pacote de medidas “irrealista”, “insuficiente” e pouco credível, sem resultados práticos. O setor, a par dos partidos da oposição, já veio aplaudir em “peso” a decisão do Chefe de Estado, e também as imobiliárias se mostram alinhadas com o Presidente.
Apesar dos negócios e dinâmica continuarem – dada a grande procura e pouca oferta de casas no mercado tanto para vender como para arrendar –, consideram que se instalou um clima de incerteza e desconfiança entre quem investe, desde que o programa para a habitação do Governo socialista de António Costa foi anunciado em fevereiro e sujeito a alterações ao longo dos últimos meses. E, tudo, sem resolver os problemas reais das pessoas e a habitacional que se vive no país. Esta é uma das grandes preocupações dos players do imobiliário, que vive atualmente um contexto económico e financeiro delicado, marcado pela subida das taxas de juro, dos custos de construção elevados e perda do poder de compra das famílias por via da inflação em alta.
O idealista/news ouviu algumas das vozes do mercado que estão no terreno para perceber como avaliam o veto de Marcelo, o que gostariam de ver plasmado no diploma que irá sair do Parlamento, e de que forma a polémica à volta do Mais Habitação está a impactar o negócio. A opinião é unânime: além de pecarem por tardias, as medidas anunciadas pelo Governo de maioria absoluta não resolvem o problema da habitação, tendo inclusive contribuído para gerar desconfiança e insegurança entre quem investe. Um cenário que se tenderá a agravar no futuro, se nada for feito, antecipam os responsáveis.
Mais Habitação: veto necessário perante pacote “insuficiente”
Alfredo Valente, CEO da iad, afirma que não poderiam estar mais de acordo com a fundamentação de Marcelo, isto é, “a convicção de que no curto prazo as medidas constantes deste pacote legislativo contribuirão em nada para a mudança do paradigma no que respeita ao acesso à habitação por parte dos jovens e das famílias”. Considera, aliás, que se a decisão surpreendeu de alguma forma, foi mais pela “força da sua sustentação” e “dimensão da crítica” em relação ao teor da legislação proposta.
Uma opinião partilhada por Luís Nunes. Para o CEO da Comprar Casa, o tema habitação não pode e não deve ser visto como um assunto de legislatura. Sendo “um tema estrutural, fundamental para a estratégia futura do país e que, sendo assim, carece de apoio parlamentar o mais abrangente possível”, pede uma “solução mais transversal que possa trazer mais benefícios e maior celeridade de execução”.
A solução para o problema implica, portanto, medidas de base e a longo prazo que fomentem o crescimento da oferta de nova habitação em Portugal. Esta é a visão de João Cília, CEO da Porta da Frente Christie’s. O responsável lembra que, nos últimos 20 anos em Portugal, a construção de novos fogos para habitação familiar tem sofrido uma redução significativa, “sendo insuficiente para a crescente procura, em especial nas grandes cidades, o que tem levado a um aumento significativo dos preços”.
“Parece-nos que o pacote de medidas avançado pelo Governo no Programa Mais Habitação é constituído por medidas que não só são incipientes como inexequíveis, e podem inclusive ter o efeito perverso de criar incerteza e reduzir a oferta no mercado, o que irá no futuro aumentar ainda mais os preços e acesso à habitação”, defende, acrescentando que a “decisão de veto do PR e as justificações apresentadas para o justificar são, a seu ver, “naturais”.
A decisão de Marcelo, que foi entretanto desdramatizada pela ministra da Habitação e desvalorizada pelo porta-voz do PS ao anunciar que vai reafirmar o diploma no Parlamento, também não surpreende Rui Torgal, CEO da ERA. “Não nos surpreende a não promulgação deste diploma. Diria que era expectável e considero normal que esta tenha sido a opção tomada na medida em que, apesar de alguns aspetos positivos, o pacote revela-se insuficiente e não contempla medidas robustas que colmatem de raiz os principais problemas com que nos confrontamos”, refere o responsável.
Ricardo Sousa, CEO da Century 21, diz que a decisão de veto do Presidente da República sobre o Programa Mais Habitação “evidencia a importância de uma análise aprofundada e detalhada das medidas habitacionais de que o país necessita”. “Independentemente das diversas visões ideológicas”, entende ser “crucial” que as políticas habitacionais sejam desenvolvidas com uma perspetiva estratégica integrada e sustentável, de longo prazo, “que permita fazer das cidades portuguesas a casa dos cidadãos nacionais e de todos os cidadãos do mundo, que pretendam viver nosso país.
“O veto pode ser visto como uma oportunidade para que todas as partes interessadas revisitem o programa e encontrem uma plataforma comum para orientar as políticas habitacionais do país, para os próximos anos. É fundamental facultar soluções de habitação bem estruturadas e pensadas, com benefícios sustentáveis e de longo prazo para os cidadãos”, defende ainda o gestor.
Contactada pelo idealista/news, “a Remax prefere deixar uma reação para quando e se um pacote de habitação entrar em vigor”, uma vez que o tema ainda está em discussão política. “Nessa altura, e depois de analisar as consequências, será mais fácil para nós abordar o assunto. Para já há ainda muita discussão política, na qual preferimos não nos imiscuirmos”, referem em resposta às questões.
Foi também com "satisfação" que a Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII) viu o veto do Presidente da República, uma vez que o programa "não oferece uma resposta efetiva à necessidade de criar mais habitação para os portugueses". Para o porta-voz dos promotores e investidores, Hugo Santos Ferreira, é preciso é criar rapidamente mais oferta em todos os escalões.
Diploma alimenta incerteza e desconfiança no imobiliário
Desde que o Mais Habitação foi anunciado pelo Governo, no arranque do ano, que o clima de incerteza se adensou no mercado. Dentro e fora do Parlamento, dentro e fora do setor, dentro e fora do país, o programa fez “estalar o verniz”, instalando-se a polémica em torno das várias medidas propostas, de que são exemplo o arrendamento forçado ou restrições ao alojamento local, passando pelo polémico fim dos vistos gold.
E se os negócios não se ressentiram num primeiro momento, face à elevada procura para a pouca oferta existente, a verdade é que, desde que pacote da habitação foi tornado público pela voz do líder do Governo, que o mercado foi-se alimentando da desconfiança. “A instabilidade legislativa e política afeta sempre negativamente o sentimento de confiança e dos operadores, este momento não foi uma exceção”, não hesita em dizer Ricardo Sousa.
Alfredo Valente acrescenta que, do lado dos investidores, “a maioria decidiu suspender os investimentos até clarificação das medidas”, e não tem dúvidas que a “atratividade do país à escala global foi de imediato afetada”. “Por outro lado, não só a oferta habitacional não aumentou - quer do lado da venda quer do arrendamento -, como os preços continuaram a aumentar”, perante a “contínua subida das taxas de juro, associada à inflação, contribuindo para maiores dificuldades de acesso ao crédito”.
Uma visão partilhada pelos vários players de mercado. Para Rui Torgal, o pacote Mais Habitação afetou não só o negócio “como todo o setor desde que foi anunciado, sobretudo, porque trouxe uma perceção de instabilidade que tende a ter um impacto imediato junto dos investidores”. Apesar disso, o CEO da ERA acredita que o Mais Habitação “foi apenas mais um fator a juntar a tantos outros que têm, de certa forma, impedido um maior crescimento do setor imobiliário ao longo dos últimos seis meses”, nomeadamente a “elevada inflação, crescimento progressivo das taxas de juro, aumento do custo das matérias-primas, falta de mão de obra, guerra na Ucrânia e um desequilíbrio acentuado entre procura e oferta que se arrasta há décadas”.
“Até ao momento, e no segmento de mercado que trabalhamos, o mercado continua bastante líquido e não registamos uma queda no número de transações. Contudo, sentimos que a incerteza gerada pode criar algumas desconfianças tanto do lado da procura (clientes compradores ou arrendatários) como da oferta (promotores e particulares). Esperamos que uma rápida clarificação política possa dar maior segurança a todos os atores de mercado”, confirma o responsável da Porta da Frente Christie’s, João Cílio.
Luís Nunes, da Comprar Casa, acrescenta que o maior impacto que têm vivido “advém das condições financeiras que o mercado oferece e dos requisitos de acesso ao crédito” e, por isso, o CEO da imobiliária considera que o programa deveria atacar os preços médios do imobiliário. “Não o fez, mas também não consideramos, de todo, que, pelo contrário, tenha feito incrementar os preços médios. Os preços mantêm-se “quentes” pela escassez evidente da oferta; mesmo com as atuais dinâmicas na concessão do crédito habitação, a realidade é que continuamos a viver num mercado com predominância da procura”, argumenta.
É urgente criar condições para aumentar oferta de habitação
Depois do veto do Presidente da República, a bancada socialista fez saber que irá reconfirmar o diploma do Mais Habitação no Parlamento. Da esquerda à direita, todos os partidos vieram aplaudir Marcelo e lamentar a intenção do PS – uma decisão que, de resto, não surpreende o Chefe de Estado: "Sabendo que há uma maioria que pode reconfirmar, em consciência não podia deixar de dizer o que pensava", uma vez que o conjunto de diplomas "não representava a base de apoio nacional que era necessária", disse.
O primeiro-ministro António Costa está de férias e ainda não reagiu a decisão do veto de Marcelo, mas a ministra da Habitação já veio deixar clara a posição do Governo, reiterando o equilíbrio das medidas. À margem de uma visita a uma obra de construção de 156 habitações para arrendamento acessível em Almada, Marina Gonçalves assinalou que a proposta do Governo “foi maturada” e teve em atenção as diferentes opiniões. Para o Executivo, diz a ministra, “a proposta como está é equilibrada, responde as necessidades e permite a curto prazo encontrar instrumentos para responder às pessoas”.
Para os agentes do terreno, a proposta do Executivo socialista não convence e falha no mais importante: a criação de condições reais para aumentar a oferta de habitação no país. Um compromisso fundamental para um mercado desajustado, em que a habitação disponível deixou, há muito, de ser suficiente para satisfazer as necessidades das famílias.
Para Rui Torgal era fundamental que pacote respondesse ao “problema estrutural” da habitação e imobiliário. “Este programa deverá dar um contributo efetivo para estimular a oferta, nomeadamente eliminando ou mitigando tudo o que se possa constituir como um potencial entrave à nova construção. Urge agilizar procedimentos e reduzir a elevada carga fiscal inerente ao processo de compra e venda de casa”, defende o CEO da ERA.
“O cenário ideal seria que a maioria parlamentar aceitasse reabrir um amplo debate sobre a política de habitação, com procura de um consenso alargado não só junto das diferentes forças partidárias, mas também dos diferentes atores que contribuem para as dinâmicas dos mercados imobiliários, que pudesse de facto, num horizonte superior ao da legislatura, sustentar uma nova política habitacional”, argumenta Alfredo Valente, para quem a probabilidade de tal vir a acontecer parecer diminuta. O responsável da iad Portugal pensa que “perde-se uma oportunidade soberana para corrigir um passo errado”, uma vez que “a maioria que sustenta o Governo manifestou já a intenção de votar novamente, sem alterações, este pacote legislativo, o que obviamente lamentamos”.
“Adivinha-se, para além da manutenção das dificuldades de acesso à habitação, uma série de disputas legais absolutamente evitáveis por parte de investidores que vêm agora os seus direitos e expectativas defraudados”, diz ainda.
O CEO da Comprar Casa lamenta que, ao longo dos últimos meses, o foco da discussão se tivesse centrado no tema do arrendamento coercivo, alojamento local e vistos gold e que, com isso, “nos tenhamos desfocado do que é, efetivamente, importante: como criar mais habitação (o nome do programa) no curto ou, no máximo, médio prazo, mas com impacto para o médio/longo prazo do país”.
“Para tal, na nossa opinião, será fundamental que o Estado seja um verdadeiro operador do mercado; importante que crie as condições necessárias para que o setor privado olhe para o imobiliário como uma desafio de futuro, com segurança (sabendo que as condições: financeiras, fiscais e de ordenamento não venham a alterar de um momento para o outro, ou de uma legislação para outra), mas também assumindo a decisão de execução, que ponha “as mãos à obra”, que possibilitem que o parque habitacional seja renovado e ampliado”, acrescenta Luís Nunes.
João Cílio, por sua vez, gostaria de sentir que os atores políticos “reconhecem a necessidade de continuar a trabalhar em soluções estruturais, mesmo depois de aprovado este pacote de medidas” “Em especial, gostaríamos de sentir a abertura para implementar igualmente medidas que fomentem a nova construção, como forma de resolver o problema da habitação de forma estrutural”, refere este responsável.
Para o CEO da Porta da Frente Christie’s, existem várias medidas que podem promover de forma mais eficaz e rápida a redução de preços, como por exemplo “a redução do IVA da construção, redução de IMI e imposto de rendimento para imóveis arrendados, redução de IMT para nova habitação a preços controlados… tudo medidas com impacto imediato nos preços, que podem ser restringidas a imóveis a preços acessíveis e potenciam o aumento do investimento em nova construção”.
A Century 21 Portugal está “totalmente alinhada com o primeiro objetivo de aumentar a oferta de imóveis para habitação”, mas também “sente falta de medidas de apoio e incentivo à construção nova”. Ricardo Sousa defende que seria fundamental a revisão dos PDM das cidades, “que na sua esmagadora maioria estão desatualizados e desfasados do contexto sociodemográfico atual”, e do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (REGEU).
"Os incentivos e apoios à inovação na indústria de construção são dos principais fatores para a implementação de novos métodos que tornem o ciclo construtivo mais eficiente", assim como "necessário e urgente rever o enquadramento do IVA na construção nova e na reabilitação, para diminuir custos de construção, para além do que está previsto no objetivo de aumentar o arrendamento acessível", analisa Ricardo Sousa. A agilização dos processos de licenciamento é outro "aspeto incontornável".
O CEO da Century 21 discorda completamente da imposição do arrendamento obrigatório de casas devolutas. Para além das questões de direito à propriedade privada, diz, "esta medida retira a confiança de proprietários e investidores no mercado imobiliário nacional".
Para proteger as famílias, neste período de maior pressão financeira, acrescenta, "faria muito mais sentido assumir como referência para os apoios extraordinários a jovens e famílias a taxa de esforço de superior a 50%, seja no arrendamento, seja nas prestações de crédito habitação, e também no acesso, ou seja, para quem necessita de aceder a uma casa, através de compra ou arrendamento".
A visão das mediadoras imobiliárias vai ao encontro do que defendem os promotores e investidores. A APPII entende que "só a reversão deste brutal aumento da carga fiscal que este Pacote acarreta, o arrepiar caminho de um novo congelamento de rendas e a criação de medidas concretas que aumentem a oferta de casas em Portugal vai contribuir para reduzir o preço das casas e tornar mais fácil às famílias ter acesso a uma casa própria", de acordo com as palavras de Hugo Santos Ferreira.
O que se segue agora? Marcelo devolveu o diploma à Assembleia da República, o que quer dizer que a proposta de lei pode sofrer alterações nas próximas semanas ou manter-se tal como está, antes de ser novamente submetida a votação no Parlamento, tal como explica a DECO Proteste. Uma vez que o Partido Socialista tem maioria absoluta e já disse que vai confirmar o documento no Parlamento, o diploma deverá ter luz verde, sendo depois promulgado e publicado em Diário da República.
Por: Idealista