Por: Dr.ª Irina Martins

Conheço uma pessoa que tem uma doença contagiosa e não é o Coronavírus. Essa pessoa, sabendo que pode contagiar outras pessoas, pode andar na rua à vontade sem ninguém fazer nada? A quem devo, se é que devo participar esta situação?

César P.

Caro César, muito obrigado pela sua questão que é bastante pertinente, contudo melindrosa, de resposta difícil e não taxativa, envolvendo diversos ramos do direito.

Convém antes de mais referir que não existe uma definição concreta do termo doença contagiosa, já que para a sua fixação contribuem diversos fatores que variam da doença e de caso a caso.

Historicamente em Portugal, a luta contra as doenças contagiosas, visando o controlo das fontes de perigo e propagação através de mecanismos médico-administrativos, e não penais, surgiu em 9 de Agosto de 1949 com a lei n.º 2036, revogada mais tarde pela lei n.º82/2009. Ambas permitem ao Estado por intermédio da Direção-Geral de Saúde tomar medidas, profiláticas, terapêuticas e educativas. Na lei de 1949 podiam os indivíduos suspeitos de doença contagiosa ou confirmados em caso de perigo ser sujeitos a proibição de frequência de espaços públicos, obrigação de isolamento podendo ser sujeito a pena e multa quem deliberadamente propagasse a doença. Existe uma tabela de doenças contagiosas que apesar das recorrentes alterações, vigora entre nós até aos dias de hoje.

Encontra-se ainda previsto no Código Penal no seu artigo 283º o crime de propagação de doença contagiosa, mas um dos princípios basilares do Direito Penal Português é o princípio da legalidade, como forma de garantia do cidadão perante o poder punitivo do Estado e perante este princípio só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática.

Mas o Direito Penal é subsidiário e só deve criminalizar determinadas condutas quando outros ramos do Direito não consigam proteger os bens jurídicos. Nesta questão em particular condiciona-se a liberdade  individual, como tal só deve ser decidido o internamento compulsivo numa última instância pois o artigo 283º do código Penal entra diretamente em “choque” com  o artigo 27º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa que proíbe total ou parcialmente a privação da liberdade, e que a acontecer tem de ser mediante sentença judicial que condene ato previsto na lei com pena de prisão ou medida de segurança. Ou seja, se a DGS decidir pelo internamento compulsivo de alguém com doença contagiosa podemos muito bem, estar perante um internamento Inconstitucional, pois não existe uma decisão judicial que sustente tal medida.

Apesar de a questão nunca ter sido levada ao tribunal constitucional, esta tem sido a posição da Doutrina. E em caso de medida de privação da liberdade inconstitucional é o estado responsável por indemnizar. Apesar de não ser o cerne da sua questão, atenção que na situação de estado de Emergência podem ser afetados Direitos, Liberdades e Garantias, sendo esta uma exceção ao princípio da Liberdade.       

É ainda de destacar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que no seu artigo 5.º, n.º1, alínea e) permite a privação da liberdade de pessoas suscetíveis de propagar doença contagiosa, tendo este tribunal decidido maioritariamente por aplicar a medida apenas como último recurso se todas as outras medidas voluntárias de isolamento do doente falharem.  Mas Portugal do ponto de vista Constitucional nunca fez a transposição plena das normas Internacionais, havendo uma ausência legislativa nesse sentido.

No que concerne ao comportamento do doente perante a sociedade, trata-se de uma mera questão ética e moral, mas não de menor importância. Tem o cidadão doente um dever cívico enquanto agente de saúde pública de não infetar a restante população e manter-se em isolamento. Podendo em casos graves e extremos levar à consequência já mencionada de internamento compulsivo ou em caso de incorrer na prática do crime tipificado, dependendo de dolo ou negligência, ser sujeito a pena de multa ou prisão até 5 anos. Mas atenção, só as doenças contagiosas podem constituir crime de propagação de doença, mas nem toda a propagação de doença considerada contagiosa constitui o crime previsto no artigo do Código Penal.

Quanto à sua atuação individual como cidadão preocupado aconselho que pondere a gravidade da doença em questão, se existe contágio disseminado, se efetivamente há um perigo grave para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem. Em caso afirmativo denuncie a situação à Delegada de Saúde da área de residência do doente que tomará as devidas medidas. Em caso de gravidade extrema poderá decidir pelo procedimento criminal, apresentando denúncia a qualquer Órgão de Polícia Criminal, fale com o seu advogado e obtenha aconselhamento mais pormenorizado e concreto ao caso.

 

Espero ter ajudado a esclarecer a sua dúvida. 

Não se esqueça a Justiça não se faz sem Advogados!

 

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