Caríssimos ratos, estimados irmãos,
Sois vós, humildes criaturas, os primeiros destinatários das minhas Cartas à Quinta, que a partir de hoje, marcarão a minha singela participação nesta coluna, que gentilmente me é concedida, porque é urgente curar as feridas da terra e aprender a curar as feridas do coração. Não sois por muitos, nesta terra que também vos é concedido habitar, acolhidos e estimados. Sabeis inteligentemente, que sois mesmo por tantos odiados e desprezados.
Mas vos escrevo para cuidar do que nunca deveríamos esquecer, porque fundamental para sermos todos, plena e verdadeiramente felizes neste mundo, a fraternidade. Somos irmãos. Devemos cuidar uns dos outros, particularmente dos mais frágeis, pequenos, vulneráveis, feridos e perdidos.
Escrevo-vos para que vos levanteis do vosso desânimo e resignação e para vos convidar à esperança e a que luteis verdadeiramente por uma autêntica liberdade. Fazei que as vossas pernas sejam asas. São tantos os que desconhecem por preconceito o que na verdade valeis: a vossa notável capacidade e força de adaptação, o grande senso que guardais pela vossa atenta e cuidada audição.
Vós vos desafiais diariamente a vencer medos e temores, a cuidar mais da inteligência do que das emoções. Amais a vossa toca, o vosso ninho de família, o cheiro e o sabor da terra, o aconchego do vosso próximo. Sois, na verdade, muito mais do que mamíferos roedores de focinho pontudo, orelhas pequenas e arredondadas, animais com longa cauda pelados, repugnantes e malcheirosos.
O vosso perfume nunca foi, de facto, o cinismo e a hipocrisia. Não sois somente os que habitais nos subúrbios e lixeiras, nas periferias. Ao escrever-vos hoje, recordei com emoção um vosso irmão, que marcou toda a minha infância e a de tantas crianças. Foi um rato famoso num programa televisivo exibido pela emissora publica portuguesa RTP. Chamava-se Topo Gigio. Já deve ser velhinho ou já deve ter partido para o jardim das delícias.
A delicadeza do seu andar e falar parecia ser feita de espuma. Tinha uns olhos sonhadores a exprimir ternura. Era amigável e dengoso. Diferia de muitos de vós na proporção das suas orelhas, grandes, redondas como uma lua cheia, de bochechas amorosas que apeteciam acariciar. Era o rato que mandava as crianças para a cama na década dos anos 70/80 do século passado. Adormecíamos serenamente e felizes com o seu beijo de boa noite e o seu abraço. Às crianças dava conselhos, aos adultos dava lições. Era um rei de pequena estatura, mas com um coração tamanho do mundo.
Um grande amigalhaço. Herdei o seu nome pelos meus amigos quando fui operado aos ouvidos. E que bom era ser abraçado por eles como o Topo Gigio. Que honra reconhecerem a verdade de um amigo. Um amigo cura. Pode mesmo salvar. Um amigo devolve-nos a verdade da liberdade e da vida. Vós, irmãos ratos, nos desafiais a nós mesmos, a vencermos com resiliência os nossos medos, a nos aventurarmos com inteligência na edificação da nossa vida. Vós nos ensinais a adaptabilidade e a determinação. Convosco podemos aprender a inocência e a fertilidade.
Vós nos despertais para a consciência. Convosco aprendemos a saber escutar. E como é urgente num tempo ferido de barulho sermos possuidores de ouvidos que escutem o silêncio. Ensinai-nos a saber adormecer no final de cada jornada com a força de um beijo e a carícia de um abraço.