Caríssimos Mosquitos, estimados irmãos,
Há noites em que o silêncio parece absoluto, como se o mundo tivesse esquecido de respirar. Mas basta um zumbido, pequeno, insistente, quase irrisório, para rasgar esse manto de paz com a delicadeza de uma navalha.
É a vossa presença de criaturas mínimas, invisíveis na penumbra, que nos perturba como uma ideia incômoda. E talvez, se olharmos de perto, sois a mais fiel alegoria do ser humano. Somos, como vós, inquietos, não repousamos, pairamos, rondamos, hesitamos, aproximamo-nos, recuamos, voltamos.
Sempre em busca de algo que não parece saciar-nos, o desejo. Vós mosquitos sois pequenos, mas não vos sentis assim. Ignorais o desespero do outro, a mão que se levanta, a parede que se aproxima. Há, em vossa obstinação, um traço de humanidade: o ego. Julgais-vos eternos, necessários, quase invencíveis. E é nesse excesso de confiança que vos tornais vulneráveis. Talvez o que mais nos irrite em vós, não seja a vossa picada, mas o vosso anúncio.
O som de vossa presença é o que nos tira o sossego. Assim como nós, desejais ser notados, mesmo que para isso preciseis de incomodar. Há quem diga que os mosquitos são só insetos. Pequenos, irritantes, inúteis. Mas quem observa bem, percebe que eles são, afinal, espelhos em miniatura da nossa própria espécie. O mosquito não chega com grandiosidade. Não anuncia a sua vinda com trombetas nem se impõe com rugidos. Ele vem discreto, silencioso, muitas vezes sorrateiro.
É na calada da noite que se ouve aquele zumbido, breve como um sussurro, mas suficiente para perturbar a paz do mais paciente dos seres. E assim somos nós: instalamo-nos lentamente, às vezes sem ser convidados, e logo reclamamos espaço, voz, território, como se tudo nos fosse devido.
O mosquito alimenta-se do sangue alheio. Não planta, não colhe, não constrói. Aproxima-se e suga. E embora a sua picada pareça inofensiva, deixa uma comichão que se transforma em raiva, um desconforto que perdura. Também nós, quantas vezes, nos aproximamos do outro apenas para extrair o que nos serve, o tempo, atenção, recursos, e seguimos caminho, indiferentes à picada deixada para trás. Mas há ainda nos mosquitos uma impressionante capacidade de adaptação.
Mudam de ambiente, resistem a venenos, aprendem a sobreviver entre chineladas e raquetes elétricas. Tal como o ser humano, persistem, teimosos, mesmo quando o mundo parece estar contra eles. E, sejamos justos: há nisso uma certa admiração. Afinal, viver é um ato de insistência. Não sejamos injustos com os mosquitos. Há entre eles, certamente, aqueles que voam sem sugar, que pairam sem ferir, que vivem discretamente, cumprindo sua parte no equilíbrio do mundo.
Tal como há humanos que não picam, não drenam, não ferem, embora, por vezes, sejam difíceis de encontrar. Seja como for, cada vez que um mosquito me rodeia o ouvido antes de dormir, penso: talvez ele só queira conversar, ser ouvido, partilhar alguma inquietação existencial. Afinal, quem nunca quis ser notado no escuro? No fundo, talvez os mosquitos não sejam tão diferentes assim. Pequenos, insistentes, irritantes, mas, por vezes, surpreendentemente humanos.