Para Cristina Branco, em entrevista à agência Lusa, gravar canções de José Afonso (1929-1987) “é quase um dever cívico”, tendo escolhido “temas fraturantes com mulheres dentro”.
“Não sendo eu uma compositora, nem autora de letras, senti necessidade de dizer que alguma coisa está mal” nos tempos que correm, afirmou.
Outra razão foi a série de concertos realizada no ano passado, com base no álbum “Abril” (2007): "Percebeu-se que estamos todos a precisar de falar, a precisar de dizer coisas relativamente ao estado da nação e achámos que este era o momento para retomar a música do Zeca [Afonso]”.
Cristina Branco acrescentou que no projeto “Abril” ficaram de fora muitas canções que lhe “são queridas”. Todavia, “neste álbum não foram necessariamente essas, daquela altura, que ficaram por dizer que entraram", mesmo que "umas sim outras não”.
A prioridade, agora, foi a necessidade de "civicamente dizer alguma coisa": "E eu faço-o através da música dos Zeca [Afonso]. De alguma forma, é a minha voz”, garantiu a cantora.
O álbum “Mulheres de Abril” é constituído por oito canções, todas compostas por José Afonso, seis delas também com líricas de sua autoria e duas sobre poemas de Luís de Camões (1524-1580), “Endechas a Bárbara Escrava” e “Verdes São os Campos”, que a cantora já tinha gravado no seu primeiro álbum, “Cristina Branco in Holland” (1997).
Do alinhamento fazem também parte “Canção do Desterro”, “Mulher da Erva” e “Teresa Torga”.
A seleção das oito canções resultou de processo de escolha de um conjunto de 25, feito pela cantora e pelo produtor Ricardo Dias, que tinha já produzido “Abril”. A equipa de técnicos e músicos de "Mulheres de Abril" é a mesma desse álbum de 2007.
“Ao fazer a minha própria escolha, percebi que muitas das canções incidiam sobre um olhar feminino, que era algo sobre o qual eu tinha uma certa curiosidade. Nunca achei que o Zeca [Afonso] falasse muito sobre a mulher. Mas, na verdade, ela é omnipresente [em toda a obra]. Ela está por toda a parte, mesmo não estando presente, ela na realidade é uma pessoa, sendo uma mulher”.
A intérprete realçou a atualidade da obra do criador de “Grândola, Vila Morena”. “É impressionante como é atual, parece que muitas coisas não mudaram, ou algumas que puderam ter mudado, regrediram rapidamente. Parece que quando damos dois passos para frente, damos um para trás”, alertou Cristina Branco.
“Continua a ser pertinente pegar em temas do Zeca [Afonso] trazê-los para cima da mesa, e perceber que há muita atualidade ali. Aliás tudo o que eu canto há a temática da guerra, da violação, do feminismo, da migração, do trabalho, da submissão, tudo isto são temas que tocam a nossa atualidade”, realçou Cristina Branco, distinguida em 2006 com o Prémio Amália/Internacional.
A criadora de “Se não Chovesse” (Manuela de Freitas/Fado Súplica, de Armando Machado) considera “preocupante o atual estado da nação” e entende que o artista deve alertar.
“Se temos uma voz, um palco, um público, por que não? Aliás, seria quase estranho não o fazer, digo eu. Acho que esse é o papel da cultura, o papel do músico”, argumentou.
Cristina Branco afirma que “o país vai mal”. "Esteve num torpor e de repente há uma série de coisas que estão a acontecer à frente dos nossos olhos, que estamos a permitir, há avanços em coisas que achávamos que eram conquistas da liberdade e que afinal já não são, há retrocessos imensos, há muita coisa para fazer; e eu acho que a música e a cultura têm um papel fundamental, pelo menos para despertar algumas pessoas que possam estar mais adormecidas”.
“Mulheres, por favor acordem”, exortou a cantora, referindo que “há um acordar”, nomeadamente das gerações mais novas e citou a sua filha. “Já são mulheres muito mais capazes de dizer não e ter uma voz ativa”, afirmou reconhecendo que a sua geração “ainda pensa como a dos nossos pais”.
“Verdade e Mentira” é um dos temas do alinhamento, uma “surpresa” na escolha final.
O álbum era, inicialmente, para ser um EP com quatro canções, para impulsionar uma nova série de concertos, mas foram surgindo mais canções “e de repente [o músico] Mário Delgado apareceu com o tema ‘Verdade e Mentira’ e disse: ‘Eu acho isto completamente a tua cara, para a tua voz, acho que devias dar uma ‘chance’, e começou a tocar a guitarra e o tema ficou assim, e não deixa de ser uma canção pertinente e mesmo da minha voz”, contou à Lusa.
Cristina Branco qualifica este álbum como “uma leitura contemporânea destes temas”. “É impossível revisitar seja o que for, sem que se seja atravessado por tudo aquilo que nos influencia, e digo isto para toda a música que eu possa fazer”.
A intérprete, como artista, considera-se em crescimento, e sublinhou o seu “enorme respeito pela música”
Para Cristina Branco, “num mundo tão acelerado, é preciso parar e questionar, escolher o trigo do joio, e é um pouco disto que está aqui neste CD, é aquilo que eu acho que é importante. É a minha voz dando voz a temas compostos há 30, 40 anos e até com a minha idade”.
A apresentação ao vivo deste álbum tem estreia no próximo dia 29 de novembro, em Lagoa, no Algarve, seguindo depois para a Casa da Música, no Porto, em 17 de dezembro, no âmbito do relançamento de uma digressão, "já com algumas datas marcadas".
Lusa