por Diogo Duarte | Jurista, Licenciado em Direito e Mestrando em Direito Internacional | diogoduarte@campus.ul.pt

Em 1914, quando perguntaram a Henry Ford que cores poderiam os seus clientes escolher para o Ford Model T, o mesmo respondeu: Podem escolher qualquer cor, desde que seja preta. Volvido mais de um século, o discurso de Mariano Rajoy apresenta uma série similitude com o pensamento fordiano, acorando-se num mesmo princípio: qualquer democracia, desde que seja a democracia que quero.

Rajoy inscreve-se certamente na corrente filosófica de Ford, sendo que o único senão deste princípio é que, os modelos democráticos não se coadunam com preponderância de um Governo ou de um governante. Ao invés, a Democracia impõe que entre a função legislativa, executiva e judicial, haja, de facto, uma separação de poderes, sem prejuízo da interconexão entre estas mesmas funções. Significa isto, entre outras coisas, que numa normal democracia, sobretudo de tipo ocidental, a justiça e a política são realidades distintas ainda que coexistam num mesmo espaço. Este princípio, que no plano do Direito se digna por Princípio da Separação e da Interdependência de Poderes, conforma, por assim dizer, um dos elementos mais basilares de qualquer democracia.

É precisamente nesse sentido, e atendendo à complexa realidade da situação política da Catalunha, que se afigura extremamente árduo, e pouco verossímil, afirmar pela integralidade da democracia espanhola, sobretudo, face à crescente a judicialização de um caso que é, essencialmente, político.

Assim, se por um lado a Catalunha, enquanto comunidade autónoma, se encontra sujeita à Constituição Espanhola, que na senda das demais tradições constitucionais, garante a integralidade territorial do Reino de Espanha, por outro lado, constata-se que o direito de autodeterminação dos povos é um direito providente do ius cogens (conjunto de normas imperativas do direito internacional) que assiste igualmente aos catalães, considerando sobretudo o exercício democrático e legítimo da consulta popular, mediante o referendo de 1 de outubro de 2017.

De igual modo, importa ter presente que na sequência das eleições de dezembro de 2017, uma das mais participadas de sempre, Carles Puigdemont viu a sua legitimidade renovada e reforçada, não obstante do avanço significativo do partido Ciudadanos, liderado por Inês Arrimadas.

Face ao desenvolvimento da, já, complexa situação da Catalunha, a intervenção dos Tribunais veio a adensar o problema, sobretudo, quando o Supremo Tribunal de Justiça espanhol acusou de delito de rebelião cerca de 13 políticos relacionados com processo de independência da Catalunha, entre os quais, se encontra o ex-presidente do executivo regional, Carles Puigdemont. Se a judicialização da questão política não fosse suficientemente imprudente e desproporcional, a detenção de Puigdemont pelo tribunal de primeira instância de Neumünster, na Alemanha, na sequência da ordem de detenção europeia emitida pelas autoridades espanholas, trouxe à colação uma nova dimensão dessa mesma judicialização, lançando a questão catalã para o seio da comunidade europeia.  

Ainda que a ordem de detenção europeia se compreenda num mecanismo de cooperação judiciária previsto no Tratado de Lisboa, dificilmente se poderá, de ora em diante, arguir que a situação da Catalunha é meramente uma questão interna de um Estado soberano. E se a judicialização desta questão ultrapassou as fronteiras da vizinha Espanha, para se tornar igualmente numa questão europeia, há que ter igualmente em conta, que em causa estão outras dimensões que tornaram esta questão, numa questão internacional.

Assim, e a partir do momento em que os tribunais espanhóis intervieram na questão, permitindo a detenção de políticos catalães sobre a acusação de crimes de rebelião e de sedição, a existência de presos políticos, passou a ser uma realidade europeia, com a qual a Europa terá que lidar.

A existência de presos políticos é tão evidente que, face à proposta do bloco independentista do parlamento catalão de investidura de Puigdemont como presidente da Generalitat, Inês Arrimadas, retorquiu:  ¿Quieren decidir en el Parlament quién entra o sale de la cárcel?” (Querem decidir no parlamento quem entra ou sai da prisão?). Esta questão revela o tratamento político que se espera por parte por parte do executivo espanhol. Embora a investidura de Puigdemont como presidente da Generalitat seja não só legítima, dado que resulta de um legítimo exercício de sufrágio e da normal confluência da composição política do parlamento catalão, mas também porque as próprias eleições antecipadas foram, à altura, incentivadas pelo executivo espanhol, Rajoy parece não se inibir do recurso aos tribunais, encetando, em simultâneo, todos os meios políticos e legais que consiga para inviabilizar a investidura de Puigdemont.

Nesta perspetiva, e considerando a oposição do Governo espanhol à conformação política da Catalunha, resultante da composição das forças partidária eleitas, razões existem para sufragar que Puigdemont é um preso político, e que face a essa circunstância a situação da Catalunha é, agora, um assunto transnacional.

Tal assim o é que, em Portugal, o voto de solidariedade para com os presos políticos da Catalunha foi levado ao Parlamento que, com votos contra do PS, PSD e CDS, deliberou a sua rejeição. Os argumentos para tal rejeição foram já utilizados noutras ocasiões. A título de exemplo, observe-se que no caso Luaty Beirão, Portugal falava da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e na manutenção das boas relações diplomáticas.  

Lamentavelmente, a questão catalã veio colocar a descoberto, uma vez mais, que a cultura democrática portuguesa ainda está longe de estar consolidada, porquanto os mais de 40 anos de democracia são ainda insuficientes para que haja maturidade política que permita distinguir os assuntos internos e as relações diplomáticas dos direitos humanos.