Entre a Música, as Raízes e o Coração
Nuno Guerreiro dispensa apresentações. A sua voz inconfundível e a sua sensibilidade artística marcaram gerações, primeiro como vocalista da Ala dos Namorados, depois como intérprete singular que levou a música portuguesa além-fronteiras. Mas por trás do artista, há um homem que carrega uma história de amor pela sua terra, pelas suas raízes e pela sua família.
Nesta conversa profunda e emotiva, explorámos um Nuno Guerreiro que vai muito além dos palcos. Falamos sobre as mudanças da vida, as perdas que moldaram o seu caminho e as decisões que, por mais difíceis que sejam, o trazem “de volta a casa”. Depois de muitos anos entre Setúbal e Lisboa, o cantor regressou ao Algarve, mais precisamente a Loulé, a terra que o viu nascer e onde sempre soube que voltaria.
Regressar não foi apenas um retorno físico, mas sim um reencontro com a sua essência. Entre memórias, projetos e novos desafios, Nuno Guerreiro partilha connosco as razões que o levaram a esta nova fase da sua vida. A música continua a ser a sua grande paixão, mas agora com um novo propósito: dar voz aos talentos algarvios, descentralizar a arte e mostrar ao mundo que o Algarve não é apenas um destino turístico – é também um berço de cultura, criatividade e excelência musical.
É assim que nasce o seu mais recente projeto: Nuno Guerreiro & Mau Feitio.
Além deste novo desafio musical, Nuno Guerreiro abraçou outro papel inesperado: o de trabalhar nos bastidores do CineTeatro Louletano, onde atua na produção e direção de cena. Depois de décadas a pisar palcos, agora vê o espetáculo de um outro ângulo, aprendendo, evoluindo e redescobrindo a magia do teatro.
Entre o passado, o presente e o futuro, esta é uma conversa sobre a força das raízes, a coragem de mudar e a beleza de nunca deixar de sonhar. Porque, no fim, a música não é apenas o que se canta – é o que se sente.

Nuno Guerreiro – Não foi fácil, mas foi inevitável. Vivi quase sete anos em Setúbal e mais alguns em Lisboa, mas algo dentro de mim sempre me puxou de volta. No fundo, sempre soube que iria regressar, só não sabia quando.
A minha mãe está cá, a minha irmã também, e depois da perda do meu pai, percebi que a vida pode mudar num instante. Vi o meu pai lutar contra a doença durante anos, vi a sua força a diminuir aos poucos, e estive ao lado dele até ao último momento. Durante a pandemia, essa luta tornou-se ainda mais dura, e quando ele partiu, ficou um vazio imenso.
Essa perda fez-me repensar muitas coisas. Fez-me perceber que o tempo que temos com aqueles que amamos não pode ser desperdiçado. A minha mãe, que sempre foi um pilar na minha vida, estava agora sem o companheiro de uma vida, e a minha irmã também precisava de mim. Foi aí que percebi que o meu lugar era aqui, que voltar não era apenas uma escolha, mas uma necessidade emocional.
Este regresso não foi apenas um regresso físico, mas um reencontro comigo próprio. Loulé é a minha essência, o meu lar, o sítio onde me sinto inteiro. Aqui, sinto-me perto das minhas raízes, das minhas memórias, e do meu pai, que de certa forma, continua presente em tudo o que faço.
V.A. – A perda do teu pai marcou-te profundamente…
N.G. – Sim, muito. Assistir à degradação de alguém que amamos é uma das experiências mais duras que podemos viver. O meu pai já tinha problemas de saúde há vários anos, mas a chegada da Covid tornou tudo ainda mais difícil. Ficou acamado durante muito tempo, e a nossa prioridade sempre foi garantir que ele estivesse perto de nós, rodeado de amor e do calor familiar. Foram anos de luta, mas também de entrega, de carinho, de momentos silenciosos, mas cheios de significado.
Mesmo sabendo que o desfecho era inevitável, nunca estamos preparados. No dia em que teve de ser internado, senti um aperto no peito, uma intuição que me dizia que aquele seria o último adeus. Foi um momento difícil, mas quis despedir-me dele à minha maneira, com palavras que ficaram só entre nós, com um olhar que dizia mais do que qualquer discurso. Quando percebi que ele já não estava, senti um vazio imenso, um silêncio pesado que mudou tudo dentro de mim.
V.A. – Esse acontecimento mudou a forma de veres a vida?
N.G. – Completamente. Crescemos à força, amadurecemos de forma abrupta. A morte do meu pai foi um ponto de viragem. Fez-me perceber que a vida não espera por ninguém, que o tempo que temos é incerto e que adiar o que sentimos ou mesmo os nossos sonhos é um risco que não vale a pena correr.
Fez-me também olhar para as pessoas de outra forma. Quando passamos por um momento assim, percebemos quem realmente está connosco e quem apenas esteve por conveniência. Infelizmente, nem todos à nossa volta são genuínos. Há muito interesse, muita hipocrisia, mas também há amor verdadeiro. E são essas pessoas, as que ficam, as que seguram a nossa mão nos momentos mais difíceis, que realmente importam.
A perda do meu pai deixou marcas, mas também trouxe clareza. Hoje, vivo com mais verdade, com mais amor, com mais consciência do que realmente vale a pena.
V.A. – E foi esse amor que te trouxe de volta a Loulé?
N.G. – Sim, sem dúvida. Loulé sempre foi o meu porto seguro, a minha verdadeira casa. Há algo aqui que me faz sentir completo. As ruas, as pessoas, as memórias… Quando regressei, sabia que queria reintegrar-me, não só na cidade, mas na sua cultura, na sua vida artística.
V.A. – Esse foi o impulso para criar um novo projeto musical?
N.G. – Sim! Estando aqui, percebi que havia um talento incrível no Algarve, mas que nem sempre têm a visibilidade que merecem. Então, comecei a investigar, a conhecer músicos, a perceber o que estava a acontecer na cena musical da região. E descobri artistas absolutamente incríveis. Senti que precisava de fazer algo, de criar um espaço onde esses talentos pudessem brilhar.
V.A. – Foi assim que nasceu Nuno Guerreiro & Mau Feitio, como surgiu esse nome para a banda?
N.G. – Exatamente! E com uma história engraçada por trás. O nome Mau Feitio veio do meu cão, o Oliver, um mini Bull Terrier. Sempre que saíamos à rua, um vizinho dizia: "Este cão tem um mau feitio" Ouvi isso tantas vezes que ficou-me na cabeça. Quando comecei a formar a banda, lembrei-me do nome e achei que encaixava na perfeição.
V.A. – E quem são os músicos que te acompanham neste projeto?
N.G. – São músicos extraordinários, todos algarvios! O Ricardo Martins, um verdadeiro mestre da guitarra portuguesa, com um talento que impressiona qualquer um. O João Palma, no acordeão, um músico brilhante com uma formação sólida no jazz, que traz uma sonoridade única ao grupo. O Vítor Bacalhau, na guitarra elétrica, um artista cheio de garra e energia, que vive e respira música. E o Vasco Moura, no baixo, que tem um groove e uma sensibilidade incríveis. São músicos fantásticos, mas que, por estarem no Algarve, nem sempre têm a projeção que merecem. No entanto, cada um deles tem um percurso de excelência e um trabalho que fala por si. Quando os reuni para este projeto, percebi que estávamos a construir algo especial, uma fusão de estilos e influências que tornam esta banda única.
V.A. – Queres ajudar a mudar essa falta de visibilidade?
N.G. – Quero e vou! Existe um preconceito de que a grande música só acontece em Lisboa ou no Porto. Mas isso não é verdade. O Algarve tem um potencial artístico gigante, com músicos de altíssimo nível, inovadores, criativos, mas que muitas vezes não têm as oportunidades certas para se mostrarem. Quero contribuir para essa mudança, para que os artistas algarvios tenham a projeção que merecem.
Este projeto é um reflexo disso. E a resposta do público tem sido incrível! Começámos logo em grande, no Caixa Alfama, o maior festival de fado do país. Foi casa cheia, um sucesso absoluto, um daqueles momentos que nos dão certezas de que estamos no caminho certo. Depois, tocámos em Lagoa, também com lotação esgotada, e no Casino Estoril, no Dia dos Namorados, onde tivemos muitos convidados especiais.
Ver a reação das pessoas, sentir a forma como abraçaram este projeto, dá-nos ainda mais motivação para continuar. Há muito mais por vir, e o melhor de tudo é saber que estamos a levar a música do Algarve mais longe, com autenticidade, com paixão e com muito orgulho.
V.A. - Com uma longa carreira artística, o que te motivou agora a começar a trabalhar nos bastidores do Cineteatro Louletano, na produção e direção de cena? O que é que essa experiência te tem ensinado até agora?
N.G. - Desde cedo que tive uma ligação muito forte com o teatro e com a música, e o Cineteatro, de certa forma, faz parte da minha história. Comecei lá com a minha banda de garagem, muito novo, e sempre tive essa sensação de que, um dia, de alguma maneira, iria voltar lá. Quando comecei a trabalhar na produção e direção de cena, não sabia exatamente o que me aguardava. A experiência é muito diferente de estar no palco como artista. Aqui, a responsabilidade é outra, está tudo por trás, nos bastidores. Eu já conhecia a magia do palco, tanto artisticamente como tecnicamente, e é um verdadeiro desafio, tem sido uma aventura fascinante. O que me tem ensinado, principalmente, é a complexidade de todo o processo que envolve um espetáculo. Tem uma grande diversidade de eventos, e o fato de estar envolvido na organização e apoio aos artistas faz-me sentir que estou a contribuir para a continuidade desse legado. Claro que há uma ligação afetiva muito forte, não só pelo meu percurso pessoal, mas também pela ligação que tenho com a sala. Lá sinto-me em casa. Além do mais há uma coisa que… é uma memória… essa memória é algo que nunca vou esquecer. O meu pai, já em cadeira de rodas, estava lá a ver-me cantar, e aquele gesto dele a fazer o sinal do "fixe", foi tudo o que eu precisava. Eu olho para o palco agora e, às vezes, sinto que ele está lá, a assistir. Essa energia, essa presença, marca-me profundamente, e é como se ele me acompanhasse nos momentos mais importantes da minha carreira. No trabalho que faço no teatro, tento sempre transmitir essa energia para os artistas, porque sei o quanto é importante sentir-se apoiado. No fundo, o que faço agora também é um tributo a ele. Não quero deixar de aproveitar esta oportunidade para agradecer a todos os meus colegas do Cineteatro pelo carinho com que me receberam, pelo apoio constante e pela oportunidade de aprender e crescer ao vosso lado. Trabalhar convosco tem sido uma experiência incrível, e sinto-me verdadeiramente grato por fazer parte desta equipa tão dedicada e talentosa. Tenho uma nova família.
V.A. – Continuas a dedicar-te aos teus concertos e, em breve, vais apresentar dois espetáculos no Cineteatro Louletano. Podes contar-nos um pouco mais sobre esses concertos? Quem te acompanha em palco? Para além disso, sei que já estás a preparar um novo disco. Parte desse álbum será gravada ao vivo durante estes espetáculos?
N.G. – Sinto-me verdadeiramente em casa, mas com uma responsabilidade ainda maior. Agora, essa responsabilidade triplicou, e vou dar tudo para que tudo corra bem. Este espetáculo é ainda mais especial. Porquê? Porque é puro talento!
Teremos a participação da Filarmónica Artistas de Minerva, que estará connosco ao longo de todo o concerto, juntamente com a minha banda Mau Feitio. Esta fusão entre a Filarmónica e a minha banda torna este espetáculo único. Serão dois concertos muito especiais e, acima de tudo, uma grande estreia.
Temos ensaiado intensamente, e o trabalho desenvolvido até agora mostra que eles estão incríveis. É um orgulho enorme partilhar estes dois espetáculos com músicos tão talentosos. São pessoas extraordinárias, como o maestro José Branco e o seu filho, Pedro Branco. Além de terem um talento incrível, são pessoas simples, transparentes e apaixonadas pela música. Adoro estar rodeado de gente assim.
Loulé tem um talento imenso! Está repleto de novos músicos a emergir, formados por esta grande escola que é um verdadeiro privilégio para todos: o Conservatório de Música de Loulé - Francisco Rosado. Na minha altura, não existia essa oportunidade… Quem me dera que houvesse! Hoje, graças a esta formação, os músicos saem muito mais preparados e profissionalizados, o que me enche de orgulho.
O nosso objetivo é levar este concerto a outros palcos, e posso garantir que vêm aí mais novidades. E, claro, seria fantástico ver um maior apoio aos artistas louletanos, que tanto merecem.
V.A. – E também vais gravar um videoclipe…
N.G – Sim! Vou lançar a minha interpretação de “Os Verdes Anos”, uma homenagem ao grande mestre Carlos Paredes. Este é um tema que tem um significado muito especial para mim. Em 1992, fui convidado para cantar nos concertos do Carlos Paredes no Teatro São Luís. Foi um dos momentos mais marcantes da minha carreira. Sem querer, foi também o que me levou à Ala dos Namorados, porque o Manuel Paulo estava lá e ouviu-me cantar.
V.A. – Escolheste a Mina de Sal como cenário para gravação do teu novo videoclipe. O que te levou a essa decisão?
N.G. – Sempre quis gravar algo lá. A Mina de Sal é um daqueles lugares que nos fazem sentir pequeninos diante da grandiosidade da natureza. Há uma atmosfera única naquele espaço subterrâneo – é como se o tempo ali tivesse parado, como se carregasse histórias antigas e segredos escondidos nas paredes de sal. Quando pensei em filmar este videoclipe, queria um cenário que trouxesse simbolismo e emoção à interpretação de "Os Verdes Anos". A Mina tem essa dualidade entre solidez e fragilidade, entre o peso da terra e a delicadeza do brilho do sal. Para mim, isso reflete muito o espírito do Carlos Paredes e da sua música: uma fusão entre força e sensibilidade. Quero explorar não só a grandiosidade do espaço, mas também a intimidade que a sua acústica proporciona. Quero algo simples, mas com impacto. Não preciso de cenários artificiais quando a própria Mina já conta uma história.
Quero que a iluminação realce os contrastes entre luz e sombra, que a imagem acompanhe a emoção da música. O vídeo vai ser muito sensorial, quase como um convite para mergulhar na profundidade do tema e da própria Mina.

N.G. – Profissionalmente, sim. Olho para trás e vejo um percurso bonito, feito de trabalho, dedicação e muitas conquistas. Já fiz tanto… Concertos inesquecíveis, colaborações com artistas que admiro, experiências que me enriqueceram como músico e como pessoa. Mas, ao mesmo tempo, ainda sinto que há muito por fazer. Há sempre novos desafios, novos caminhos a explorar. A arte não tem um ponto final, é um ciclo contínuo, e eu ainda tenho muita coisa para dizer através da música.
V.A. – E a nível pessoal?
N.G. – Às vezes sinto um vazio. Como dizia a Amália, "há sempre um vazio inexplicável". Acho que faz parte de quem vive da arte. Há uma inquietação constante, um desejo de criar, de encontrar algo que nem sempre sabemos definir. É como se estivéssemos sempre à procura de uma melodia perfeita, de um verso que ainda não foi escrito, de uma emoção que precisa de ser traduzida em música.
V.A. – Acreditas que esse vazio algum dia se preencherá?
N.G – Talvez não, e talvez seja isso que nos faz continuar. Se nos sentíssemos completamente plenos, será que ainda teríamos vontade de criar? Será que ainda procuraríamos novas formas de nos expressarmos? Acho que esse vazio é também o combustível para o que faço. Mas há momentos em que gostava de o silenciar um pouco, de sentir um pouco mais de paz.
V.A. – E onde encontras essa paz?
N.G. – Nos pequenos detalhes. Num passeio com os meus cães, no mar do Algarve ao entardecer, numa conversa sincera, na música que faço sem pressa, só pelo prazer de cantar. São momentos assim que me lembram que, apesar de tudo, a vida tem beleza e que, no fundo, esse vazio faz parte.
V.A. – Tens algum medo?
N.G. – Sim. O meu maior medo é perder a minha mãe. Sei que faz parte do ciclo da vida, que ninguém fica para sempre, mas a ideia de um dia não a ter aqui assusta-me. A minha ligação com ela é muito forte, um amor incondicional. Desde criança que ela sempre foi o meu porto seguro, a minha referência.
V.A. – Foi também por isso que voltaste ao Algarve?
N.G – Sim. Acima de qualquer outro motivo, voltei por ela. Sempre disse que um dia voltaria, mas a partida do meu pai acelerou esse processo. Percebi que não queria perder tempo, que queria estar mais presente. Ela tem 81 anos, está ótima, mas começo a notar aqueles pequenos sinais do tempo… Aqueles momentos em que nos damos conta de que a vida é frágil. Sei que não podemos travar o inevitável, mas podemos valorizar cada instante. E é isso que estou a fazer.
V.A. – Como imaginas o teu futuro?
N.G. – Simples. Não preciso de grandes coisas, nem de uma vida agitada. Imagino-me rodeado pelos meus animais, pela música, pelas poucas, mas verdadeiras amizades que importam. Quero continuar a cantar, mas também quero viver com tranquilidade, sem pressas, sem aquela necessidade de estar sempre a correr atrás de algo. Não sei o que a vida me reserva, mas sei que estou onde devo estar.
V.A. – E isso chega para te fazer feliz?
N.G. – Sim. Isso basta. Felicidade, para mim, nunca foi sobre ter muito, mas sim sobre sentir-me bem comigo próprio. Se tiver o essencial – a música, o carinho de quem realmente importa e a paz de espírito – então, tenho tudo.
Nathalie Dias