Houve quem tivesse ficado de pé, com o livro “Misericórdia” na mão, enquanto doze leitores partilharam a sua opinião sobre a obra, a partir de um excerto que leram. Uma centena de livros foi oferecida pelo Município aos leitores da Biblioteca e Lídia Jorge, chegada a sua vez, referiu que foi uma das mais interessantes explorações literárias da sua obra e que foi “muito, muito tocante”. O presidente da Câmara Municipal, José Carlos Rolo salientou tratar-se “um livro atento a este nosso tempo, juntando os marginais da idade e os marginais sociais”, o que levou Lídia Jorge a acrescentar que “este livro não é uma casa fechada, está inscrito no tempo”.
No passado dia 17 de dezembro, a Biblioteca Municipal Lídia Jorge juntou uma centena de leitores da autora para assinalar os 20 anos deste espaço cultural. Foram oferecidos 100 livros de “Misericórdia”, obra que ao longo de 2023 obteve diversos prémios nacionais e estrangeiros. Desses leitores, alguns foram convidados a ler um excerto e a fazer um comentário. Luísa Monteiro, que juntamente com Carla Ponte (Divisão da Cultura) e Elisabete Silva (Clube de leitores da Biblioteca) pensaram o programa a oferecer à comunidade, apelidou o livro de “uma pangeia literária”, o que Lídia Jorge reforçou, dizendo tratar-se de um livro de “recursos cruzados” e que “muitas das pessoas que leram estes excertos estão no livro”, e que o mesmo fora escrito a pedido da sua mãe, que esteve institucionalizada num lar. “A 8 de março de 2020 estive com a minha mãe e ela pediu-me que escrevesse um livro chamado Misericórdia. Ainda tentei escrever um poema intitulado ‘Miserere’, mas passados 40 dias da sua morte senti que fiquei com uma herança nas mãos vinda da minha mãe. Foi uma experiência muito profunda. E se, tal como o Pe. César que acredita numa outra vida, essa mesma vida existir, então, os que aqui [Biblioteca] estão, vão voltar a ver a minha mãe”. O Pe. César Chantre acompanhou a mãe da autora, que esteve no mesmo quarto do lar onde estava a mãe de Indaleta Cabrita, presidente da Junta de Freguesia de Albufeira e Olhos de Água e que “de vez em quando entravam em conflito por causa da televisão”, mas “elas tiveram muita sorte”, concluiu Lídia Jorge. A sua mãe, D. Remédios (D. Alberti, no livro), “esperava sempre a visita do Arménio [Aleluia Martins] que lhe oferecia sempre ‘Panettoni’, que ela adorava”, ilustrou ainda a escritora nascida em Boliqueime, nesta referência ao amigo de longa data. Outros leitores foram construindo o mosaico da “dimensão empática e de presença” que o programa de celebração de aniversário visava: Roberto Leandro arrancou gargalhadas a propósito de um excerto sobre eletrodomésticos, Paulo Moreira deliciou a plateia como bom ‘diseur’ e assinalou a ironia patente em muitos momentos do livro, tendo Lídia Jorge assinalado o excerto que o encenador e ator fez, como “a descrição da figura do amor que transforma a vida”. A professora da Escola Secundária de Albufeira, Francelina Lourenço, partilhou uma crítica literária que Lídia Jorge apelidou de “magnífica”, realçando o valor da Beleza no modo de olhar os alunos, que inicialmente transmitem um juízo ao professor, mas que com o passar do tempo, “do que vemos do aluno é a alma”. Patrícia Seromenho, Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Albufeira assinalou um parágrafo em torno da comida e da importância social da estrutura que representa, e isso permitiu a Lídia Jorge tecer diversas considerações em torno da resposta social dada a pessoas de idade avançada: “Há um mistério na presença da morte que é a nossa consciência humana”; “há em todas as pessoas a honra de se ser gente, gente que faz parte de uma formação espiritual, que é um caminho ao lado deste”. Para a escritora, urge sair-se de “uma resposta [cujo padrão] que nos chega da “Era industrial” e que “ainda não conseguimos superar”. Da área da Psicologia, a vereadora Cláudia Guedelha, da Ação Social, escolheu um excerto que fez a autora salientar que a sua mãe “era uma mulher muito forte”, desse leque de mulheres que durante o Estado Novo tudo fizeram para que as suas filhas tivessem uma vida diferente das suas, uma mulher de “recusa”. “De uma recusa” ao que era imposto, e que “nos empurraram, que nos tiraram os torrões da terra para sermos alguém”. Presente ainda, Desidério Silva, primo de Lídia Jorge, que durante o seu mandato à frente da Câmara Municipal de Albufeira convidou a escritora para dar nome à Biblioteca (“porque houve uma consonância e não por eu ser a sua prima”, salientou Lídia Jorge, acrescentando: “o tempo foi dizendo que o meu primo teve razão”), o que ocorreu a 7 de outubro de 2009. O ex-autarca leu, de modo emotivo, um diálogo existente no livro entre mãe e filha e Lídia esclareceu: “Eu estou lá transfigurada, para mostrar a reação forte de uma mulher. Esse é o capítulo da relação. Uma escritora também se mostra” e “uma escritora é alguém que faz amor com o universo”.