Dentro de poucos dias, vai entrar em vigor em Portugal a chamada Lei Whistleblowing(LW). Transposta do direito comunitário, visa proteger as pessoas que denunciem infrações em entidades dos setores público e privado. E traz consigo obrigações acrescidas, cujo incumprimento pode resultar em coimas até 250 mil euros. A grande dúvida do momento é se as agências imobiliárias com menos de 50 trabalhadores estão contempladas pela nova lei. Na ausência de esclarecimentos públicos, nomeadamente por parte do Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção (IMPIC), os juristas consideram que sim. E explicam porquê.
1. A Lei 93/2021 – Lei Whistleblowing
Conforme tem sido bastante divulgado e discutido nas comunidades jurídicas e empresariais, no passado dia 20 de dezembro de 2021, foi publicada a Lei 93/2021(“LW”), que estabelece o regime geral de proteção de denunciantes de infrações e que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019.
"A LW entra em vigor a 18 de junho de 2022 e prevê novas obrigações para as denominadas entidades obrigadas", começa por explicar a Lamares, Capela & Associados*, neste artigo preparado para o idealista/news, frisando que "as obrigações da LW estão previstas para todas as pessoas coletivas, incluindo o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público, que empreguem 50 ou mais trabalhadores - entidades obrigadas".
No entanto, tal como alertam os juristas, existirão entidades que, mesmo que tenham menos de 50 trabalhadores, estarão abrangidas por esta Lei e serão também entidades obrigadas.
Quais são as principais obrigações das entidades obrigadas pela Lei Whistleblowing?
· Estabelecer canais de denúncia interna que permitam a apresentação e o seguimento seguros de denúncias. Os canais de denúncia:
1. podem ser operados internamente (receção de denúncia e seguimento), ou por operadores externos (para receção de denúncia);
2. podem ser por escrito, ou de forma verbal (telefone, mensagem de voz ou, a pedido do denunciante, por reunião presencial)
· Notificar, no prazo de 7 dias, o denunciante da receção da denúncia, e informá-lo, de forma clara e acessível, dos requisitos, autoridades competentes e forma e admissibilidade da denúncia externa;
· Praticar os atos internos adequados à verificação das alegações aí contidas e, se for caso disso, à cessação da infração denunciada, inclusive através da abertura de um inquérito interno ou da comunicação a autoridade competente para investigação da infração;
· Comunicar ao denunciante, no prazo máximo de 3 meses a contar da data da receção da denúncia, as medidas previstas ou adotadas para dar seguimento à denúncia e a respetiva fundamentação.
No processo de tratamento das denúncias e dos dados das pessoas envolvidas, as entidades obrigadas terão que:
· Garantir a independência, a imparcialidade, a confidencialidade, a proteção de dados, o sigilo e a ausência de conflitos de interesses;
· Manter um registo das denúncias recebidas e conservá-las, pelo menos, durante o período de cinco anos;
· Não praticar atos de retaliação contra o denunciante.
A falta de cumprimento das obrigações previstas na LW está sujeita a coimas:
Consoante a gravidade da Contraordenação em causa, as coimas poderão ir:
· até 250.000 euros no caso das contraordenações muito graves,
· até 125.000 euros no caso das contraordenações graves.
As agências imobiliárias com menos de 50 trabalhadores estarão abrangidas?
Passando agora para a análise do que é o foco deste artigo, e que requererá algum aprofundamento e escalpelização do jogo de remissões que nos faz questionar a aplicabilidade da LW às agências imobiliárias em geral, temos desde logo o artigo 8.º n.º 1 da Lei 93/2021, que estatui que:
“1. As pessoas coletivas, incluindo o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público, que empreguem 50 ou mais trabalhadores e, independentemente disso, as entidades que estejam contempladas no âmbito de aplicação dos atos da União Europeia referidos na parte I.B e II do anexo da Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, doravante designadas por entidades obrigadas, dispõem de canais de denúncia interna.”
Ora, estão abrangidas pela LW as pessoas coletivas com mais de 50 trabalhadores.
Mas também estarão abrangidas, independentemente de terem 50 ou mais trabalhadores, as entidades contempladas no âmbito de aplicação dos atos da União Europeia referidos na parte I.B e II do anexo da Diretiva (UE) 2019/1937?
"Cremos que sim", analisam os especialistas legais da Lamares, Capela & Associados, dizendo que isto "leva-nos a inferir que as agências imobiliárias, mesmo com menos de 50 trabalhadores, estarão abrangidas pela LW". E explica, argumentando:
1. A LW afirma que são entidades obrigadas as entidades com menos de 50 trabalhadores que estejam contempladas no âmbito de aplicação dos atos da União Europeia, referidos na parte I.B e II do anexo da Diretiva (UE) 2019/1937,
2. No Parte II, n.º 2 do anexo da Diretiva (UE) 2019/1937 refere-se como dentro destes atos da União Europeia a:“(…)i) Diretiva (UE) 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho (...)”;
3. E, na Diretiva 2015/849, estabelece-se, no Artigo 2.º, que:
A presente diretiva é aplicável às seguintes entidades obrigadas:
1. Instituições de crédito;
2. Instituições financeiras;
3. As seguintes pessoas singulares ou coletivas, no exercício das suas atividades profissionais:
· Auditores, técnicos de contas externos e consultores fiscais;
· Notários e outros membros de profissões jurídicas independentes, quando participem, quer atuando em nome e por conta do cliente numa operação financeira ou imobiliária, quer prestando assistência ao cliente no planeamento ou execução de operações de: i) compra e venda de bens imóveis ou entidades comerciais, ii) gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos pertencentes ao cliente, iii) abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança ou de valores mobiliários; iv) organização de entradas ou contribuições necessárias à criação, exploração ou gestão de sociedades, v) criação, exploração ou gestão de fundos fiduciários (trusts), sociedades, fundações ou estruturas análogas;
· Prestadores de serviços a sociedades ou trusts que não estejam já abrangidos pela alínea a) ou b);
· Agentes imobiliários;
· Outras pessoas que comercializam bens, na medida em que sejam efetuados ou recebidos pagamentos em numerário de montante igual ou superior a 10.000 euros, independentemente de a transação ser efetuada através de uma operação única ou de várias operações que aparentam uma ligação entre si;
· Prestadores de serviços de jogo.
Porque devem estar as agências imobiliárias obrigadas a cumprir os deveres da nova lei Whistleblowing?
"Sendo as agências imobiliárias uma pessoa coletiva cuja atividade é a mediação imobiliária, e que tem agentes imobiliários ao seu serviço, seriam, partindo desta linha de raciocínio, uma entidade obrigada", afirmam desde a sociedade de advogados, concluindo que "a LW aplicar-se-ia, portanto, a agências imobiliárias, que estariam obrigadas a estabelecer os competentes canais de denúncia, independentemente do n.º de trabalhadores a cargo ou agentes contratados".
Este entendimento, alegam ainda os juristas, "apoia-se também no facto de que o legislador português usa o termo entidades obrigadas, usado precisamente no artigo 2.º da Diretiva 2015/849, acabada de citar".
Como nota final, diga-se que, a confirmar-se este entendimento, e tendo em atenção o estabelecido no artigo 2.º da Diretiva 2015/849, serão entidades obrigadas, mesmo com menos de 50 trabalhadores, outras pessoas coletivas que exerçam as atividades aí abrangidas.
A equipa de juristas, no âmbito da preparação deste artigo, diz que efetuou tentativas de esclarecimento junto do Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção (IMPIC) a respeito da aplicabilidade da LW às agências imobiliárias, mas até ao momento da publicação não obteve esclarecimento cabal deste instituto, que apenas referiu não ter diretrizes a propósito. Também no site do regulador não existe qualquer comunicação formal visível para o mercado, na sua homepage.
*Pedro Manero Lemos, advogado da Lamares, Capela & Associados.
Por: Idealista