a nossa última conversa…
A primeira entrevista que fiz ao Nuno Guerreiro foi em março de 2011, num café em Loulé, perto de onde morava na altura.
E a nossa conversa começou logo assim…
– Olá Nuno, [Vai um beijinho] tudo bem?… Pronto para conversarmos?
Ele levanta-se e, com um sorriso enorme, diz:
– Olha, cheguei mais cedo porque vim tomar o pequeno-almoço e assim já estou cá. Queres comer alguma coisa?
– Não, obrigada, já comi…
– Mas pede alguma coisa para eu não comer sozinho…
E pronto, assim quebrámos o gelo inicial de uma entrevista…
Depois de beber uns goles do seu galão, olha para mim e diz:
– Já percebi que isto vai correr bem. És daquelas que olha nos olhos…
E entre cada frase que se dizia… lá começávamos a rir, ele estava muito bem disposto e falava do seu trabalho com muito orgulho.
Recordo que essa entrevista durou praticamente até à hora de almoço, pois a conversa fluía e, como dois bons conversadores, não havia espaço para o silêncio.
Ao longo destes anos, houve outras entrevistas e também assisti a alguns dos seus espetáculos, algumas vezes trocávamos mensagens e sabíamos que estávamos ali – qualquer coisinha era só escrever no WhatsApp.
Um dia, recebo uma mensagem diferente e engraçada do Nuno…
– Aloo (iniciava sempre assim), olha, lembrei-me de ti…
– Ah, sim… conta lá…
– Olha, tenho aqui uns gatinhos, filhos do meu Simão e da gata da minha irmã. São da raça Sphynx, são lindos, tens que ficar com um.
– Oh pá… logo agora que acabei de oferecer uma gata às minhas miúdas… não consigo ficar com mais animais. Mas queres que divulgue?
Se souberes de alguém… eles são mesmo especiais…– Sim, agradeço a ajuda… mas não digas que são meus… senão não dou conta. 
E assim me tornei na mediadora da doação dos gatinhos. Ao divulgar nas redes sociais, começaram a chover mensagens que eu reencaminhava para o Nuno.
Coincidíamos em vários sítios ou eventos no Algarve, como o MED, o Salir do Tempo, onde ele até levava o seu cão. Muitas vezes encontrávamo-nos no hipermercado, onde até tínhamos que sair da fila, pois havia sempre muita conversa para pôr em dia.
Ultimamente víamo-nos quase sempre no ginásio, eu andava a fazer reabilitação, e lá nos instalávamos a conversar. Por fim, já dizíamos: “Bom, vamos lá treinar, que isto assim não é vida…”
Ele perguntava-me sempre sobre a minha saúde após as duas cirurgias que fiz no ano passado (remoção de pedras nos rins) e falávamos de uma tosse insistente que me incomodava…
– Olha, tens de tomar este remédio (nem me lembro do nome). A minha médica recomendou e para mim tem sido fantástico.
E assim, nas semanas seguintes, perguntava sempre se o remédio tinha surtido efeito.
No passado mês de fevereiro, mandei-lhe uma mensagem:
– Nuno, preciso de falar contigo. Quero fazer-te um convite…
– Eu já te ligo, pois ando hiper ocupado com a preparação do meu novo espetáculo no Cine-Teatro Louletano. Tenho que te contar, vai ser único! Tenho músicos do Algarve, vou fazer uma homenagem ao Carlos Paredes… (e por aí fora) – conversa de hora e meia.
– Mas isso tens de me contar com mais calma, pois é assunto para publicar numa super entrevista… (risos)
– Boa ideia, vamos combinar o dia. Mas se calhar, como vou gravar um vídeo na Mina do Sal no próximo dia 10 de março, podias lá ir, fazias fotos e conversávamos…
– 10 de março?… olha, eu tinha tirado esse dia, pois é o meu aniversário.
– Ah… olha, fazíamos a festa lá em baixo… (risos) Ok, depois combinamos melhor…
Uns dias depois recebo uma mensagem do Nuno…
– Aloo, estás na redação? Posso passar por aí?
– Sim, estou. Podes vir…
Momentos depois, a porta d’A Voz de Loulé abre-se e, com um enorme sorriso:
– Cucu… posso entrar?
– Claro… (risos, beijinhos e conversas…)
– Então? – perguntei – O que se passa?
– Olha, Nathy, estive a pensar… como é o teu aniversário, não quero estragar o teu dia. Então fazemos assim: diz-me quando tens disponibilidade e eu venho cá e fazemos a entrevista…
Era assim, sempre preocupado com os outros. Eu já tinha reagendado algumas coisas e feito as contas para o meu jantarinho, mas ele veio e redefiniu tudo só para não me estragar o dia de aniversário…
Uns dias depois, lá combinámos, e veio então à Redação d’A Voz de Loulé. Chovia a cântaros, o Nuno chegou meio molhado da chuva, mas sempre com um sorriso enorme…
– Cucu, posso entrar???
– Oh homem, entra já! Então com esta chuva… isso nem se pergunta!
– Hoje não podes tirar-me fotos… tive de pôr este gorro na cabeça e estou feio…
– Como se isso fosse possível…
(Risos) – Lá estás tu…
Lá conversámos, durante horas, e era muito engraçado…
– Olha, pára aí o gravador, que esta parte ninguém pode saber…
E lá me contava histórias e coisas que lhe tinham acontecido…
De entre as coisas que dizia, tudo era dito com grande paixão: o nome dos seus músicos, do seu manager, das pessoas que trabalhavam com ele, da nova família do Cine-Teatro… mas o brilho nos olhos foi quando falou do pai…
– Sabes, eu não conto isto a muita gente, mas contigo tenho confiança. Estar naquele palco do Cine-Teatro, além de ser um sonho de criança fazer lá um grande espetáculo, o que me preenche a alma é o facto de ter sido ali a penúltima vez que o meu pai foi a um espetáculo meu. Quando estou no palco, é como se ele estivesse ali sentadinho na cadeira de rodas a fazer-me o sinal de Fixe… consigo vê-lo, consigo senti-lo. É como se naquela imensidão estivéssemos ali só os dois. É tão bom…
E o Nuno não contém as lágrimas ao falar do pai. Ele era assim: um coração puro, enorme, emotivo, sentimental – e a família era tudo para ele…
Quando lhe perguntei o que mais o preocupava no futuro… não titubeou:
– A minha mãe… preocupa-me muito a minha mãe… ela já não vai para nova e, apesar de ser uma “Guerreira” como eu – aliás, somos uma família de “Guerreiros” – tenho medo… e não estou preparado para o que lhe possa acontecer… olha, pára de gravar… não consigo… espera um pouco…
Novamente, o Nuno não resiste, e aquelas lágrimas são tão sentidas, tão naturais, que também eu acabei por perder a compostura…
Momentos depois:
– Desculpa, não consigo evitar…
E assim íamos conversando…
Diz o Nuno:
– Oh pá, tu tiras-me tudo cá de dentro… até acabo por dizer coisas que deveria guardar só para mim…
– Com tudo o que tens dito, já quase tenho material para escrever um livro… a tua biografia…!
– Quê? Ay… sabes que eu já tinha pensado nisso, mas pensei em fazê-lo quando fosse mais velhinho… assim para ter mais coisas para contar, nas diferentes fases da minha vida… mas gostei da ideia… e gosto que sejas tu a escrever. Olha, agora vou ficar com isso na cabeça… (risos)
Mais tarde, quase a acabar a conversa, onde se falava de sonhos e coisas ainda por fazer, ele diz:
– Sabes, estou numa nova etapa da minha vida. Quando se passa a barreira dos 50, parece que vemos as coisas de outro ponto de vista. Estou agora mais calmo, só quero viver feliz, aproveitar a vida e organizar a minha velhice… quero assim uma casinha pequena, simples – olha, as casas típicas algarvias são um encanto! Claro, com todas as comodidades, mas não pode faltar uns quartos para a minha mãe e a minha irmã… e claro, preciso de um quintalinho ou um pedaço de terreno para os meus animais… Pode ser mais para o campo. Aí poderei compor, inspirar-me e continuar a dedicar-me à minha música. 
Ah verdade, disseste que querias fazer-me um convite… o que é?
– Olha acabei de escrever um novo livro, que apesar de ser infantil, é um tipo de literatura para os adultos lerem aos mais pequenos. Neste caso, é um livro que descreve o sonho de algumas pessoas com necessidades especiais e que frequentam a associação EXISTIR. E quando falei com o Dário, o Francisco, a Ana e a Carolina, pensámos em quem poderia escrever um prefácio, mas que o escrevesse com sentimento, pois não é uma história comum – é uma história especial. E sem que ninguém tivesse combinado ou conversado nada… o nome que surgiu por unanimidade foi o teu… assim que…
– Aceito! Quanta honra, obrigada por me darem esta oportunidade… dá cá um abraço…
E pronto, outra vez com lágrimas nos olhos, lá continuámos…
– Oh pá, que bom… nunca fiz um prefácio, mas vou dar o meu melhor…
E continuámos a combinar as coisas…
– Tenho receio é de não ter muita disponibilidade para depois te acompanhar nas apresentações do livro. Se calhar, fazemos um vídeo, e assim, se eu não puder estar presente, pões o vídeo…
Os dias passaram, fui ao espetáculo do Cine-Teatro no dia 31 de março, e aquele Nuno em cima do palco era outro Nuno – poderoso, cheio de uma força e de uma luz que deixava o público mudo, petrificado, atento ao mais ínfimo detalhe… e bastava ele fazer um sinal para todos começarem a cantar e a aplaudir.
Dias depois recebo uma mensagem:
– Aloo, já tens algum feedback da entrevista e do espetáculo? Aqui te envio o prefácio, espero que gostes. Depois passo aí… Ah, escuta… aquilo do livro da minha biografia… gostei da ideia. Acho que vou avançar…
E foi assim… tudo parou de repente… No dia 17 de abril partiste…
Mas digo-te, Nuno, que estes dias já ouvi a gravação da última entrevista algumas vezes, repito aquelas partes em que ainda me fazes rir, só para ouvir a tua alegria e a tua gargalhada.
E assim te guardarei e recordarei…
 
Nathalie Dias     Diretora dos Jornais     A Voz de Loulé e A Voz do Algarve 
 
 

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