Joaquim Bispo, escritor diletante, http://vislumbresdamusa.blogspot.com/
Lembro-me que apareceu, de súbito, a dormir debaixo das arcadas do meu prédio. Era alto, um pouco curvado, barba e cabelo grandes, olhos encovados sempre baixos, vestia um eterno sobretudo e parecia ter bem mais de cinquenta anos. Deitava-se sobre um cartão grande, para se proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava um cobertor. De dia, raramente se via.
Nas diversas tentativas de contacto, tinha sempre a mesma reação: virava a cara, mudo, e chegava a afastar-se do local, sem ares de rudeza. Mas não recusava o que lhe trouxessem. Recebia, fazia um aceno com a cabeça e recolhia-se.
Em muitas noites, de vários invernos, vi-o contorcer-se em cima do cartão, talvez com fome ou frio, talvez com dores de alguma mazela. Começámos a acreditar que um dia acordaríamos com a notícia de que fora encontrado morto na sua cama de cartão.
Certo dia de folga, resolvi seguir-lhe o deambular diurno. Com a sua carga de sacos às costas, foi contornando lentamente os limites da cidade. Numa rua do Olival, um homem saiu de uma tasca e entregou-lhe um pequeno embrulho. Depois de comer a sandes num banco de pedra com vista sobre o vale e fazer a sesta, sentou-se num ponto estratégico, e ficou-se a espreitar, longamente, algo lá em baixo, junto ao riacho. Eu não via mais do que uma fila de casinhotos toscos, com arremedos de quintal, que alguns tinham tomado à ribeira para fazer horta.
Ao voltar os binóculos, para apurar a direção em que olhava, fui surpreendido pelas lágrimas que lhe rolavam macias pelo rosto barbado. Quase saltei de curiosidade. Concentrando a atenção, julguei descobrir a causa de tanta emoção: duas crianças brincavam despreocupadas num dos quintalecos.
No silêncio dessa noite, sentindo a presença dorida do pobre diabo deitado lá fora num chão rijo, decidi-me a procurar soluções junto da autarquia, assim que amanhecesse. Mas de manhã estava frio, eu tinha dormido pouco e tinha sono. De tarde fui trabalhar e adiei a diligência.
Já no fim dos cinco anos que ali passou, aceitou relutantemente sair dali com uma mulher acompanhada de alguém da autarquia. Correu o boato de que era filha.
Não voltámos a vê-lo. Que nome teria? Que dramas esconderia? Nunca o soubemos. Ou nem quisemos saber.