Sílvia Gonçalves, Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, esclarece-nos acerca da situação Covid-19 existente no Lar. Explica-nos passo a passo o que aconteceu e como foram geridos e controlados todos os acontecimentos.

VA: Como é que foi gerida a situação COVID-19 no Lar de Boliqueime?

Sílvia Gonçalves: Felizmente está tudo controlado, desde o dia 1 de junho que já não temos casos Covid-19 positivos. A situação foi gerida da melhor forma possível, embora tenhamos sido surpreendidos por esta pandemia. Ouvia-se falar do vírus na China e na Itália, mas estávamos longe de imaginar que estava tão perto da nossa instituição. Adotámos desde o início todas as medidas que nos foram chegando formalmente por parte da Direção Geral de Saúde, bem como da Segurança Social e outras entidades superiores, também restringimos as visitas logo no dia 11 de março e encerramos o centro de dia e creches. Tínhamos tudo em ordem, incluindo os planos de contingência, no entanto fomos surpreendidos por um funcionário que descobrimos que estava infetado com Covid-19. Depois e apesar da surpresa, contactámos imediatamente com a Delegada de Saúde pondo-a a par que um colaborador tinha contraído o coronavírus. Seguiu-se uma testagem massiva no Lar e descobrimos que havia 21 utentes com Covid-19 com resultado positivo, sendo que no total perfez 30 utentes infetados. Após as testagens, as decisões foram tomadas pelo Comandante Operacional Distrital da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, pelo Centro Distrital de Segurança Social e pela Autoridade de Saúde, ou seja, nós enquanto instituição deixamos de ter qualquer controlo pelas decisões da instituição. Internamente tentamos agir da melhor forma sendo que alguns colaboradores da instituição decidiram abandonar a mesma, quer seja por medo por receios, quer seja porque adoeceram. Tivemos 5 pessoas que tiveram de ir para as suas casas e um total de 13 infetados. Posteriormente foi feita uma divisão dos utentes positivos que ficaram no lar e os utentes negativos que foram para um hotel. Fomos tratando os nossos utentes da melhor forma possível com a colaboração sempre das entidades de saúde, sendo que tivemos disponíveis enfermeiros 24h por dia e um médico que nos fazia “visitas” diárias. Por fim, implantámos também medidas muito apertadas de higienização, por exemplo, passou pela chegada ao lar, descalçarmo-nos à entrada e despirmos a roupa trocando por uma que só utilizamos dentro da instituição.

Na minha opinião nós tivemos azar, a 13 de março eu já tinha feito o nosso plano de contingência que já tinha sido aprovado pela administração e um mês depois tinha colegas de outros lados a pedir o meu plano de contingência porque ainda não tinham feito.

VA: Que medidas foram tomadas antes e depois do foco de infeção no Lar?

SG: Como já disse fomos implementando as medidas que nos iam chegando pela autoridade de saúde. Primeiro era obrigatório o uso de máscara, depois deixou de ser obrigatório o uso de máscara. As medidas foram sempre apertadas, antes só higienizávamos as mãos quando entravamos, agora trocamos a roupa sempre que chegamos ao lar, porque achamos que temos de ter um cuidado rigoroso. Se algum utente for ao hospital, faz teste ao Covid e depois fica isolado durante os 14 dias. Nós fomos surpreendidos pelo vírus muito cedo, por isso todas estas condutas ainda não tinham sido implementadas pela Direção Geral de Saúde. Na minha opinião, nós tivemos azar. A 13 de março eu já tinha feito o nosso plano de contingência que já tinha sido aprovado pela administração e um mês depois tinha colegas de outros Lares a pedir o meu plano de contingência porque ainda não o tinham feito. A primeira pessoa a quem foi diagnosticado o vírus foi a nossa diretora técnica que tinha estado de férias a 13 de março e que devia regressar a 30 de março, no entanto sentiu-se constipada nesse período e quando deveria voltar achou que ainda não estava bem curada. Apesar de não ter febre nem tosse, decidiu fazer o teste porque é uma grande responsabilidade trabalhar num lar. Assim, foi ela a primeira a quem o teste deu positivo. Contudo, não sabemos se terá sido um utente que foi ao hospital ou se foi uma visita e por isso não sabemos qual foi o foco de contágio.

Para além disso, tivemos o reforço de uma equipa da Cruz Vermelha que nos vieram apoiar e eu faço um agradecimento muito especial aos nossos recursos humanos e à Cruz Vermelha que abandonaram as suas famílias para cuidar dos nossos utentes, ou seja, usando a expressão “demos o nosso corpo à bala”, como é o meu caso que fiquei infetada com Covid-19.

VA: Em algum momento temeram que o foco de infeção alastrasse à comunidade em geral?

SG: Não porque nós ficamos em confinamento aqui, incluindo colaboradores porque não queríamos colocar os nossos familiares em risco e ninguém saia, a não ser para ir ao hospital. Os utentes foram curados aqui e a pandemia foi ultrapassada com bastante resistência e confiança por todos e especialmente com muito esforço por parte dos colaboradores resistentes da instituição que não nos abandonaram a nós e aos utentes. Para além disso, tivemos o reforço de uma equipa da Cruz Vermelha que nos vieram apoiar e eu faço um agradecimento muito especial aos nossos recursos humanos e à Cruz Vermelha que abandonaram as suas famílias para cuidar dos nossos utentes, ou seja, usando a expressão “demos o nosso corpo à bala”, como é o meu caso que fiquei infetada com Covid-19. Nós no fundo ficámos aqui a salvar vidas e correndo riscos. Todavia é de lamentar porque faleceram 5 pessoas, na nossa realidade morrem uma ou duas pessoas por mês, pois quem vem para o lar já são pessoas com muita dependência. É importante referir que o Lar de Boliqueime preza muito a limpeza e queremos ter muita qualidade para os nossos utentes, desde os tabuleiros às melhores fraldas e ficamos muito triste pelo facto do vírus ter entrado aqui.

VA: Qual foi a reação das famílias e dos utentes a este surto no Lar de Boliqueime?

SG: A primeira reação das famílias foi má, nós não sabemos como o vírus cá entrou, se foi através de um utente, de um funcionário ou de um familiar. A testagem massiva foi feita dia 2 de abril e no dia seguinte eu e o vice-provedor ligámos a todos os familiares a explicar a situação e a perguntar se algum dos familiares queria levar o idoso para casa e consequentemente tratar dele, isto porque íamos passar por momentos difíceis aqui. Dos 59 telefonemas que fizemos, nem um familiar quis levar o utente para casa. Posso dizer que nem todos reagiram mal, houve sim familiares que nos criticaram e também houve famílias que nos apoiaram. Os utentes a princípio estavam receosos, com o uso de máscaras, viseiras, luvas, etc… mas depois a pouco e pouco foi-se resolvendo, apesar de ter sido um bocadinho agressivo para eles. Todavia, os nossos utentes sabiam que nós estávamos aqui para cuidar deles. Foi também agressivo para alguns idosos terem de deixar os seus quartos, as suas coisas e ir para um hotel. Também é importante referir que tudo foi ultrapassado com mais leveza graças à boa disposição e apoio dos colaboradores.

Isto mostra que o setor social está cada vez mais a responder às necessidades da população

VA: Os utentes já têm visitas de familiares? Como se processam essas visitas?

SG: Neste momento, já recebem visitas dos familiares, mas só começaram a receber visitas a partir do dia 8 de junho dada a situação e claro com muito cuidado e segurança. Isto mostra que o setor social está cada vez mais a responder às necessidades da população. As visitas são feitas num salão, que tem uma entrada pelo exterior, colocamos lá uma mesa com mais de 2 metros de largura e tem um acrílico no meio. O idoso vem pelo interior e os familiares vem pelo exterior do lar com máscara e as mãos desinfetadas. No período de confinamento os utentes falaram com os seus familiares através de videochamada no WhatsApp e isso foi muito importante para eles para que existisse uma aproximação aos familiares.

VA: Como foram e por quem foram realizadas ações de desinfeção do estabelecimento?

SG: As desinfeções foram feitas pelas equipas da GNR, mas esses pedidos foram tratados sempre pela autarquia. Foi feita desinfeção e higienização, nós temos primeiro andar e rés-do-chão, primeiro foi desinfetado o primeiro andar e os utentes passaram para o rés-do-chão e depois foi o inverso.

VA: Como Provedora o que acha que terá acontecido para o início deste foco no Lar?

SG: Para ser sincera, em relação ao foco, eu não sei, só lhe sei dizer que o vírus entrou aqui muito cedo e nós ainda estávamos a implementar todas as medidas. Em fevereiro, por exemplo, tínhamos uma utente que ia frequentemente ao hospital a consultas de oncologia e nessa altura como ainda não era obrigatório, não era feito a quarentena e essa senhora que ia muito ao hospital testou positivo na primeira instância. Estamos sempre na dúvida de quem terá trazido o vírus, não sabemos, nem se irá saber. As pessoas querem culpar alguém, especialmente os jovens, mas a culpa não é de ninguém, é do vírus. É claro que não se deve fazer festas, mas o vírus existe e teremos de nos adaptar. Gostava ainda de acrescentar para que fique claro que os lares não são estruturas de saúde e a lei não obriga a presença de médicos nos lares, só obriga a um enfermeiro por 40 utentes, por isso não podemos “inventar” profissionais de saúde. Semanalmente era feita uma reunião com a autoridade de saúde, com a Câmara de Loulé, Segurança Social e a Misericórdia era muitas vezes pressionada para que arranjássemos profissionais de saúde e é bom frisar que o Lar não é um hospital. Por acaso temos um médico a tempo inteiro, mas a legislação não obriga a que isso aconteça. Para além disso, quero ainda esclarecer que os Lares não podem baixar os braços e nós somos estruturas com um risco acrescido pois aqui vivem pessoas com mais de 80/90 anos e sendo uma residência coletiva é mais facilmente propagável visto que aqui coabitam muitas pessoas.

Gostava ainda de acrescentar para que fique claro que os lares não são estruturas de saúde e a lei não obriga a presença de médicos nos lares, só obriga a um enfermeiro por 40 utentes, por isso não podemos “inventar” profissionais de saúde.

VA: Que mensagem quer deixar a todos os que estiveram envolvidos nesta situação?

SG: Quero agradecer às pessoas que estiveram aqui, todas elas foram importantes. Para além disso, não me posso esquecer que tivemos também voluntários, jovens de 20/21 anos que vieram cá no passado mês de maio ajudar na animação e higiene e acho que as pessoas que aqui estiveram e os voluntários que aqui vieram foram excecionais. Até fiquei comovida com os jovens que vieram, voluntariamente e sem ganhar nada, ajudar-nos nesta causa e apoiar as pessoas idosas, a limpar os óculos, as viseiras, etc... Colocaram-se em risco eles próprios, por isso só posso agradecer a todos os que ajudaram no combate à pandemia.  

 

Por: Carolina Figueiras