Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor.

Comecemos por aquilo que se sabe. Gil Vicente é o pai do teatro português. É também o autor da mais ousada sátira da corte régia nos alvores da modernidade ibérica. Dele chegaram até nós autos, farsas e moralidades em que a sociedade do século XVI, da plebe ao trono, é exposta em todo o seu grotesco, em todo o seu humano, em todo o seu português. E no entanto, quase nada sabemos do homem. A sua biografia é um esboço onde se cruzam interrogações, omissões e uma suspeita antiga: a de que o dramaturgo e o ourives Gil Vicente talvez fossem... a mesma pessoa.

A tese não é nova, mas nunca foi unanimemente aceite. Compreende-se porquê. A possibilidade de que o criador de personagens como o judeu Lianor Vaz, o fidalgo pobre ou o frade cornudo, fosse o mesmo artífice que moldou uma das obras-primas da ourivesaria europeia, a Custódia de Belém, parece à primeira vista uma fantasia de romancista. Mas talvez não seja. Há indícios que, tomados em conjunto, merecem ser revisitados com o rigor da história e a imaginação da dúvida.

A Custódia de Belém foi encomendada por D. Manuel I como oferenda ao Mosteiro dos Jerónimos, com o ouro trazido da África pelos navegadores portugueses. É uma obra de uma riqueza técnica e simbólica raríssima — e está hoje guardada no Museu Nacional de Arte Antiga. O autor que nela inscreveu o seu nome foi um ourives chamado Gil Vicente. Um homem que, pelo que sabemos, trabalhava directamente com a Casa Real, era da confiança do monarca e detinha acesso ao ouro do império. Um cargo de tamanha delicadeza só poderia ser exercido por alguém da mais absoluta confiança do rei.

Ao mesmo tempo  ou por esses mesmos anos começa a surgir nas cortes régias uma produção dramática singular, que expõe vícios e ridículos da sociedade com uma acidez que, noutras circunstâncias, teria custado a cabeça ao autor. No entanto, este Gil Vicente dramaturgo goza de uma imunidade notável. Ri-se do clero, satiriza fidalgos, põe o povo na boca dos diabos e continua a escrever. Não apenas continua, como é sucessivamente chamado a representar as suas peças em festas régias e datas solenes. É o autor oficial de um teatro subversivo. E ninguém lhe toca.

A crítica literária tem, desde o século XIX, separado estas duas figuras: o ourives e o dramaturgo. Uns sustentam que se trata apenas de homonímia. Outros, que os estilos são incompatíveis. Mas é curioso que os documentos do tempo não os distinguem com clareza. E mais curioso ainda que ambos partilhem o mesmo nome, vivam no mesmo espaço cortesão e beneficiem da mesma proteção régia. Estaríamos perante um homem de dois talentos? Um artista total que fundia ouro e sátira com igual mestria?

As datas não desmentem a hipótese. A Custódia de Belém é de 1506. Os primeiros autos vicentinos datam de 1502. A linguagem usada nos autos não é a de um poeta académico, mas sim de alguém com ouvido para a fala popular, para a língua viva da rua e do ofício. E se é verdade que o ourives trabalhava com metais preciosos, o dramaturgo também forjava personagens, ambos mestres da composição, ambos artesãos. Um com cinzel e buril. O outro com verso e trocadilho.

Sob D. Manuel I, Portugal viveu uma era de glória e mistério. É perfeitamente plausível que o Rei Venturoso, conhecedor do génio de Gil Vicente, tenha protegido o seu duplo ofício. Se o ourives era digno de guardar o ouro do império, talvez só ele pudesse gozar impunemente com a corte. A confiança era absoluta. E a dissimulação, necessária. Afinal, rir do poder exige coragem, (ao contrário do que hoje se vê por aí...muita coragem com os fracos e pouca com os fortes...)mas também um bom esconderijo.

Nada disto prova, de forma conclusiva, que o ourives e o dramaturgo fossem a mesma pessoa. Mas também ninguém o conseguiu negar em definitivo. Entre o ouro que brilhou no altar e as palavras que incendiaram o palco, sobra-nos um nome, uma assinatura, um enigma. Gil Vicente, o pai do humor português... ou talvez, o ourives que ria com o rei.